Folha de S. Paulo


Mundo sem democracia é como escola chata sem recreio; veja linha do tempo

Ser criança é mais divertido. Há coisa mais chata do que, quando adulto, não falar o que se pensa; abaixar a cabeça para chefes; sorrir de piadas sem graça? Criança não: ri quando quer, chora quando precisa, beija quem merece e fica emburrada quando dá na telha.

Meu tempo de criança foi quase assim. Justo nesse período, um golpe militar derrubou um presidente eleito pelo povo. Em 1964, eu, com oito anos, não entendia muita coisa. Via com certa estranheza amigos de família receosos de abrir a janela. Estavam escondidos. Motivo? Pensavam diferente do governo golpista, apenas isso. Não haviam ferido uma mosca ou roubado uma carteira. Só queriam um mundo menos injusto, mais verdadeiro, mais criança talvez.

Editoria de Arte/Folhapress

O que isso tem a ver com democracia (poder do povo) e ditadura? Tudo. Subitamente fui obrigado a abandonar a infância. A ditadura encara todos como animais amestrados. Todos têm que pensar igual, rezar a mesma cartilha, concordar com os de cima e fingir satisfação, seja em casa, no colégio, no emprego. Tive até sorte por frequentar uma escola relativamente liberal. Na maioria, porém, ai de quem ousasse falar mal da "Revolução de 64".

Um exemplo: hoje assistimos a uma epidemia de dengue no país. No tempo da ditadura, estourou um surto de meningite. O que fizeram os generais? Proibiram a imprensa de falar disso. Ora, como podia haver doença grave naquele regime maravilhoso de botas e fuzis? Assim foi com inúmeros temas durante 21 anos, para não citar as centenas de mortos e desaparecidos.

Para alguns, o país pós-1985, quando a ditadura acabou e a democracia voltou, pode parecer uma "bagunça". Esses 30 anos exibiram momentos delicados: morte de Tancredo, impeachment de Collor, hiperinflação, corrupção etc. Mas, salvo trágicas exceções, nenhuma vida foi perdida, nenhuma voz foi silenciada, nenhum jovem ou criança foi punido por suas opiniões. E, quando isso acontece, não há a censura militar para apagar fatos. Bendita bagunça.

A democracia brasileira é o paraíso? Claro que não. O país progrediu? Claro que sim. A diferença, para muito melhor, é que na democracia podemos conhecer nossos problemas e então protestar, concordar, votar, lutar por direitos e procurar soluções sem medo de abrir a boca. Vence quem convencer mais gente, sem pretender calar quem perdeu ou puxar o tapete de quem ganhou. Na ditadura vale apenas música de uma nota só; é mais ou menos como estudar numa escola chata sem hora do recreio. Afinal, contra tanques não há argumentos.


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