Folha de S. Paulo


Ex-editora convidou Frei Betto, Chico Anysio e outros para escrever na 'Folhinha'

Quando a criadora e primeira editora da "Folhinha", Tia Lenita, deixou o caderno, ela foi substituída pela jornalista Cecilia Zioni.

Durante os 11 anos em que editou a "Folhinha", Cecilia convidou grandes nomes para escrever para o caderno. Frei Betto, Paulo Leminski, Ruth Rocha e Chico Anysio são algumas das pessoas que passaram pelas páginas do caderno.

Leia abaixo o depoimento de Cecilia Zioni, em que ela relembra também o Clube de Ciências e outras seções que a "Folhinha" teve nas décadas de 1970 e 1980. Quem quiser contar histórias sobre a "Folhinha" pode escrever para folhinha@uol.com.br.

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Reprodução
Capa da Folhinha nº 1000, que Cecilia Zioni editou
Capa da Folhinha nº 1000, que Cecilia Zioni editou

Fui trabalhar na Folha recém-formada, em 1969. E saí em 1989 --20 anos depois. Comecei como repórter de economia, até ser convidada a editar a "Folhinha", em 1974. Fui a segunda editora e fiquei na função até 1985, quando passei o bastão a Bell Kranz e retornei para a economia.

Fazendo essas contas, percebo que meu tempo no jornal se dividiu em duas metades: uma com o noticiário econômico, outra na "Folhinha". Qual me agrada mais? Não sei. Uma única certeza: se o jornalismo econômico ocupou o maior tempo em minha carreira, até aqui, foi no infantil que vivi alguns dos anos de maior realização profissional.

Tive, ao editar a "Folhinha", grande autonomia de ação e liberdade para inovar. Como não era do ramo, achei melhor tentar caminhos novos, improvisar. Nisso tive amplo apoio da chefia da Folha --e muita cobrança também.

Octavio Frias de Oliveira, dono do jornal e a alma da Folha, me fez, logo no começo, uma recomendação: "A senhora tem de fazer uma 'Folhinha' indispensável para a criança de hoje e inesquecível para o leitor em que essa criança se transformará depois."

Ou seja, indispensável por ajudar a criança a fazer a lição de casa, a entender um pouco mais o que aprendia na escola, a perceber mais amplamente o mundo em que vivia, como me explicou Frias, um grande incentivador e apoiador de todas as novidades sugeridas. Ou quase todas.

Fazer a criança crescer --na escola e na vida-- tinha sido, sem dúvida, o mote criador da "Folhinha", projeto imaginado nos anos 60 por José Reis, jornalista com alma de cientista, que colocou, na fundação do suplemento, ao lado de Lenita Miranda de Figueiredo e Mauricio de Sousa, pelo menos dois especialistas, Isaias Raw e Maria Julieta Sebastiani Ormastroni.

Por isso, Ciências foi sempre seção importante na "Folhinha", graças ao trabalho de Maria Julieta, que fundou, montou e manteve por anos e anos o Clubinho de Ciência do suplemento, embrião do Clube de Ciência e Cultura do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, origem também das Feiras de Ciências e do Concurso Cientistas de Amanhã, os dois há anos incorporados à política nacional de apoio ao ensino de ciências.

Semanalmente, Maria Julieta reunia um grupo de crianças, em boa parte leitores da "Folhinha" e conversava com elas sobre um fato corriqueiro, sem deixar supor ser um tema científico. Dessa forma, ela as levava a deduzir princípios e conceitos científicos e a conversa era, depois, transformada em texto e publicada na "Folhinha" --com fotos e ilustrações.

Difícil? Não para Maria Julieta. Por exemplo, para explicar o fenômeno da condensação, ela fez as crianças observarem as gotas formadas numa garrafa de refrigerante, retirada da geladeira. A experiência foi transformada em texto e publicada: dias depois, um advogado (apreciador de chope) escreveu para o jornal, contando que só tinha entendido, de fato, a formação de gotas no copo de sua bebida depois de ler para sua filha a reportagem da "Folhinha".

Arquivo pessoal
Cecilia Zioni
Retrato da jornalista Cecilia Zioni

Não por outra razão, por causa da seção Ciências, a "Folhinha" recebeu menção especial do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pelo trabalho de divulgação científica e tecnológica em 1980, 1981 e 1983. Sobre esse trabalho, recomendo ler este belo depoimento de Maria Julieta.

Também para cumprir a rota definida por Frias, a cada semana, a pauta seguia o programa de comemoração de datas cívicas, que fazia parte do ano letivo, à época. A "Folhinha" inovou, publicando textos informativos e analíticos, preparados por estudantes e professores de história. Não era raro receber, na Redação, telefonema de mãe, pai ou professor, perguntando se a "Folhinha" iria "dar alguma coisa sobre o Sete de Setembro"...

Proposta direta de Frias que teve sucesso absoluto foi a seção "Folhinha nas Escolas", projeto realizado com colaboração de duas jovens talentosas, a pedagoga Beatriz Cardoso e a escritora Laís Carr Ribeiro. A cada semana, uma escola era visitada para apresentar algum projeto novo, criativo e inspirador, desenvolvido por professores e alunos.

Na semana seguinte, em página dupla, esse trabalho era mostrado. Foi assim que, entre outros, a "Folhinha" publicou um debate sobre autoridade dos pais, realizado entre alunos do colégio Vera Cruz, coordenado por Beatriz. E Laís montou, com alunos da escola estadual Marta Figueiredo Neto Silva, o roteiro de um premiado livro, "Esta Vida Sem Fantasmas Não Tem Graça", assunto de reportagem em maio de 1982.

Com estas duas tarefas bem definidas, introduzi uma terceira, inspirada por gente do ramo: atrair a criança para a leitura, para o gosto de ler, começando pela "Folhinha" e pelo gibi, para depois passar para o jornal e o livro. Nessa empreitada, devo mencionar Oswaldo Mendes, jornalista, ator, diretor e autor de teatro, à época coordenador da área que, na Folha, abrangia editorias como "Educação" e "Folhinha".

Foi com seu apoio que pude realizar a grande virada: trazer a literatura infantil para o suplemento. Isso foi feito sob duas vertentes simultâneas. A primeira, desafiar autores, jornalistas, publicitários, artistas a escrever para crianças. A segunda, trazer os mais conhecidos autores de literatura infantil para as páginas do jornal.

Resultado: a "Folhinha" publicou contos inéditos de Luis Fernando Verissimo, Paulo Leminski, Frei Betto, Cora Ronai, Carlito Maia, Chico Anysio, entre outros. Artistas plásticos, ilustradores e chargistas também participaram da empreitada --nada mais nada menos que Nani, Vasqs, Jun Yokoyama, Jayme Cortez, Ivan & Marcello, Fausto, Renata Pallottini, Ciça e Zélio, entre os mais assíduos.

Na outra vertente, a de autores famosos e autores iniciantes da literatura infantil, tive a inestimável colaboração das duas rainhas absolutas da área --Tatiana Belinky e Stella Carr. Elas abriram caminho para convite a outros autores importantes: Ruth Rocha, Carlos Queiroz Telles, Domingos Pellegrini, Pedro Bandeira, Hernani Donato, Mario Donato, Elias José, por exemplo, estão entre os que deram força ao projeto.

Outra ajuda de Tatiana e Stella foi motivar gente nova a colaborar: a "Folhinha" publicou, então, autores que se tornaram famosos e se firmaram na área logo nos anos seguintes. Entre estas joias da coroa, cito Eva Furnari, que estreou no suplemento, Ricardo Azevedo, Edson Gabriel Garcia, Luís Camargo e muitos mais.

Jornalistas da Folha também aderiram ao projeto, a partir de Otavio Frias Filho (autor de "Fausto Doente", de 1983), então secretário do conselho editorial, além de Renato Pompeu, Walcyr Carrasco e Oswaldo Mendes, para citar apenas três.

Mesmo sob risco de exagerar, gosto de considerar esta uma das mais importantes revoluções da "Folhinha", numa época em que a literatura infantil não tinha o espaço conquistado depois no mercado editorial brasileiro. Não à toa, recebeu menção honrosa pelo apoio à literatura, numa das premiações anuais da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Importante é lembrar que, nesses anos 70 e 80, pouco havia de específico para adolescentes na indústria editorial. E a "Folhinha" abriu espaço para publicar desenhos e textos enviados por eles, em meio a desenhos de irmãos menores. Ver suas tiras e quadrinhos no jornal (na seção Futuro Artista, depois Jovens e Humor) abriu o caminho para muitos deles.

Neste relato do designer gráfico Alexandre Silva, uma das muitas crias da "Folhinha", vários profissionais contam seu começo na área, via "Folhinha".

Se a "Folhinha" inovou no texto e na abordagem de temas para crianças, não posso deixar de citar também a abertura na ilustração. De Mauricio de Sousa, o suplemento publicava duas páginas importantes, Horácio e Divertimentos, além de ilustrações para textos e contos. Mauricio entendeu a proposta e cedeu espaço para seus jovens desenhistas (Alberto, Rosana, Júlio, Villa, Olga...) mostrarem o que sabiam fazer. Todos passaram ilustrar textos com personagens por eles criados, ombro a ombro com a famosa Turma da Mônica.

Outros artistas, já na área ou iniciantes, também foram acolhidos, como Márcio Levyman, Fausto, Pat Gwinner, Tenê de Casa Branca, Geandré, Nicoliello, Angela-Lago.

Gosto de lembrar uma curta experiência, a Quadrinha da Mamãe, sugerida por Maura, irmã e sócia de Mauricio: ela "surrupiou" uma dezena de poemetos educativos escritos pela mãe dos dois, a poetisa Petronilha Araújo de Sousa, que publicamos como surpresa.

Quero concluir este depoimento citando outra inovação importantíssima da "Folhinha": oferecer leitura para quem ainda não sabe ler: Historinha (sem palavras), de Eva Furnari, abria a página 2 do suplemento e nela foi lançada a Bruxinha, uma das mais famosas personagens atuais da literatura infantil. Ao lado, em Passatempo, o pedagogo Edson Kosminzki desafiava, só com desenhos, os leitores mais novos a resolver charadas problemas de associação de ideias. As duas seções foram sucesso absoluto --entre pequenos e grandes. Aliás, esta é outra característica da "Folhinha", desde sempre.

Comecei a editar a "Folhinha" antes de minha primeira filha nascer. Depois, ela e seu irmão se orgulhavam de saber que a mãe chegava tarde do trabalho porque "estava fazendo a 'Folhinha'". Agora, espero ler a "Folhinha" para meus netos.


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