Folha de S. Paulo


Saiba por que 'O Pequeno Príncipe' tem apelido de 'livro de miss'

No Brasil, "O Pequeno Príncipe" ficou conhecido como "livro de miss". Isso porque várias misses (moças bonitas que participam de concursos de beleza) citavam a obra como livro preferido.

Na década de 1980, ele chegou a entrar em listas de livros de autoajuda, que prometem uma fórmula para ser mais feliz ou se dar bem no emprego, por exemplo. Essa categoria não costuma ser considerada literatura.

Para os entrevistados pela Folha, "O Pequeno Príncipe" não é autoajuda. É literatura e das melhores. "Por que se desconfia que livros que agradam a milhares de leitores não são literatura?", questiona Marisa Lajolo, professora de literatura do Mackenzie e da Unicamp.

Já o escritor e colunista da Folha Ruy Castro provoca: "Claro que é literatura. E, como toda boa literatura, serve também como autoajuda."

"'O Pequeno Príncipe' caiu no gosto popular que nem a Mona Lisa. É comum as pessoas escolherem uma frase do livro e a dependurarem na frente do nosso nariz. E, como já conhecemos a frase, às vezes, achamos uma chatice. Mas é um livro bonito", diz Angela-Lago, escritora e ilustradora.

Reprodução
Ilustração do livro
Ilustração do livro "O Pequeno Príncipe"

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"O Pequeno Príncipe" é literatura ou autoajuda?

"Sim, é literatura. Li praticamente tudo o que Saint-Exupéry escreveu, li 'Voo Noturno', 'Terra dos Homens', "Correio Sul"... Ele tem um estilo de prosa poética que pode não ser do gosto de todo mundo, que pode parecer piegas às vezes, mas, evidentemente, não é autoajuda. Ele não estava querendo dar conselhos a ninguém. Eram considerações filosóficas. É um estilo completamente coerente com tudo o que ele escreveu."

Ana Maria Machado, escritora premiada pelo Hans Christian Andersen

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"'O Pequeno Príncipe' se insere numa tradição literária: fábulas de ensinamentos. Tanto nas fábulas de La Fontaine, nas parábolas cristãs, nos koans orientais (enigmas de ensinamento) quanto nos breves contos do sufismo, uma narrativa simples pode ser portadora de múltiplas mensagens. Considera-se o narrador como alguém que faz um 'contrabando' de conceitos fundamentais como se estivesse falando de algo tolo e sem a menor importância. 'O Pequeno Príncipe' mescla preceitos arcaicos a um cenário de ficção científica, daí sua grande originalidade literária. Além disso, trata-se de uma obra que desafia categorias, (autoajuda, infantojuvenil etc.) e só por isso vale a pena ser lida."

Heloisa Prieto, escritora, autora de livros como "Divinas Travessuras" (Companhia das Letrinhas)

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"A lembrança que eu tinha desse livro era um pouco nebulosa, então aproveitei a oportunidade para reler 'O Pequeno Príncipe'. Tive uma bela surpresa. O livro ficou tão estigmatizado que eu esperava encontrar algo cafona. O tom poético está na medida. Na parte em que ele viaja pelos planetas, conhecendo diferentes tipos humanos, a narrativa tem uma pegada de fábula. E, como toda fábula, há um questionamento moral. Mas eu não diria que é autoajuda. Comparado à autoajuda infantojuvenil que está sendo publicada hoje em dia, 'O Pequeno Príncipe' é alta literatura. Se bobear, o autor teria dificuldade de publicá-lo em 2013, por falta de um tema transversal que se encaixe claramente ao currículo escolar."

Índigo, escritora, autora de "Perdendo Perninhas" (ed. Hedra), entre outros

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"A 'Folhinha' me manda uma pergunta, e eu respondo com outras. Você sabia que "O Pequeno Príncipe" já foi traduzido para 216 línguas diferentes? E que mesmo não sendo um livro nada novo foi um dos mais vendidos do Brasil no ano passado?O que será que este sucesso todo nos diz? Será que é porque o livro conta uma aventura por planetas imaginários, e as pessoas que gostam de ler, as pequenas e as grandes, adoram aventuras e lugares inventados? Ou será que é porque 'O Pequeno Príncipe' trata de problemas que são comuns a muita gente, e por isso algumas pessoas chamam o livro de autoajuda? Acho que um dos segredos do livro é que ele lança muitas perguntas. Muitos leitores encontram nelas algumas respostas, enquanto outros se divertem. Literatura ou autoajuda? Os dois. Ajudei alguma coisa?"

Cassiano Elek Machado, repórter especial da Folha

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"Ingredientes de 'O Pequeno Príncipe': uma flor, uma raposa, uma jiboia, uma caixa, um planeta, um menino, um aviador... Modo de fazer: misture a gosto todos esses elementos; acrescente um narrador em primeira pessoa que saiba desenhar e contar histórias. Mexa bem, de preferência de forma inusitada. Prove o gosto da massa. Não deve estar muito salgada nem muito doce, nem muito triste, nem muito alegre, talvez provoque um gosto estranho na boca. Talvez seja preciso provar a massa de novo, para conferir se está no ponto. Se a primeira amostra já for suficiente, então deixe a massa descansar por 70 anos. Descubra a massa adormecida. Prove. Constate, surpreendentemente, como ela continua fresca e com o mesmo sabor. Não reli o Pequeno Príncipe após 70 anos, mas depois de 40. Nesse tempo o livro dormiu em minha estante, mas nunca se perdeu dentro da leitora. Fui relê-lo e reencontrei uma série de imagens e sensações guardadas, mas nunca evocadas. Surpresa de leitor: ainda me deliciei com o gosto da massa, com o frescor da narrativa inventiva e das ilustrações delicadas, sugestivas, instigantes, poéticas. Esse livro é literatura que ajuda a formar leitor: uma história atemporal, que não envelhece, que se mantém fresca e viva com o passar dos anos, que conversa de diferentes maneiras com diferentes leitores de diferentes culturas, que provoca diferentes sensações, estranhamentos, descobertas e reflexões em leitores de todas as idades, que preserva a capacidade de silenciar o leitor, de conduzir o olhar para algum ponto além da página, de fazer com que o leitor se cale ou que faça perguntas, e procure pelas respostas, dentro e fora do texto."

Márcia Leite, escritora, autora de livros como "Olívia Tem Dois Papais" (Companhia das Letrinhas) e editora da Pulo do Gato

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"'O Pequeno Príncipe' é, sim, literatura. Por que não seria? Por que será que se desconfia que livros que agradam a milhares de leitores não são literatura? Será porque tais livros prescindem de críticos e de professores que 'expliquem' sua beleza? Faz tempo que o livro de Saint-Exupéry é vítima dos que legislam sobre a boa literatura... Antigamente não era literatura porque era leitura de candidatas a miss; agora é porque é autoajuda; talvez daqui a um tempinho seja discriminado por insuflar sentimentos monarquistas em sociedades republicanas... Trata-se de ficção, invenção de situações imaginárias passíveis de serem compartilhadas por muita gente. Encontro no livro uma reflexão sobre a solidão e a dificuldade de compartilhamento. Numa linguagem límpida, que envolve leitores que, gratos, copiam frases do livro em blogs e cadernos. Para mim, isso basta para uma obra ser literária. Gosto do livro. Reli-o recentemente e o achei muito mais triste do que o tinha achado em leitura anterior."

Marisa Lajolo, professora de literatura da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Unicamp; é autora de diversos livros, como "O Poeta do Exílio" (ed. FTD)

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"Claro que é literatura. E, como toda boa literatura, serve também de autoajuda."

Ruy Castro, escritor e colunista da Folha

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"Conheço pouco o Pequeno Príncipe, mas tenho certeza de que se trata de uma obra literária de qualidade, da qual muitos leitores extraem conselhos e conforto espiritual, o que muitos chamam pejorativamente de "autoajuda". Mas as grandes obras literárias, de modo geral, todas são um pouco de "autoajuda"; de tão bonitas, bem escritas e verdadeiras, sempre têm algo a ensinar e a nos ajudar a nos tornarmos pessoas melhores. O problema da autoajuda é quando a beleza, a boa escrita e a verdade são deixadas de lado e fica só o aconselhamento e a intenção de reconfortar."

Paulo Werneck, editor da "Ilustríssima"

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"'O Pequeno Príncipe' caiu no gosto popular que nem uma Mona Lisa. É comum as pessoas escolherem uma frase do livro e a dependurarem na frente do nosso nariz. E como já conhecemos a frase, às vezes achamos uma chatice. Mas no fundo é um livro bonito. Gosto das ilustrações também. E gosto da ideia de que, mesmo com o avião caído no meio do deserto, o autor achou companhia e se 'auto' ajudou. Aliás, essa ideia me 'auto' ajuda também, o que não é nenhum mal."

Angela-Lago, escritora e ilustradora

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"No desenho a cobra ameaça e tranquiliza o menino em cima do muro: não se preocupem, o perigo aqui nunca vai deixar de existir. Gosto de ver como as aquarelas de Saint-Exupéry conversam com a história, é como conversa de raposa e menino. Consigo ver que a jiboia engoliu o elefante no desenho, mas já não sei a diferença entre desenho e palavra. 'O Pequeno Príncipe' dá ao delírio o verdadeiro poder de poesia. Se o Geógrafo de um dos planetas que o príncipe visita duvida do relato dos exploradores, Saint-Exupéry acredita no leitor. Ele o provoca, com sua cartografia feita de delírios. Se alguém encontrar um principezinho, se ele perguntar coisas e essências e não responder quando lhe perguntarem, talvez seja melhor sentir areia de deserto entre os pés. Encher a cabeça de desenhos."

Roger Mello, ilustrador e escritor, três vezes indicado ao Prêmio Hans Christian Andersen

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"É interessante pensar como um dos livros infantis mais famosos e lidos no mundo, como O Pequeno Príncipe, do francês Antoine de Saint-Exupéry, é também o livro que muitos ainda não leram, ainda que venham a conhecer seu personagem e alguma dúzia de frases do celebrado autor. Uma pergunta que comecei a me fazer: como ler, hoje, as aventuras do principezinho, com o espírito livre, e o que lá iríamos encontrar? Antoine de Saint-Exupéry elegeu a forma de parábola para narrar as aventuras e os dissabores do menino vestido com casaca azul de botões brilhantes, como habituamos a ver nas ilustrações e em inúmeras adaptações. Cada episódio revela um simbolismo bastante eloquente permitindo aos leitores encontrarem, no texto, uma crítica tanto social, quanto filosófica a respeito de valores humanos e à manutenção da vida. Ora, os símbolos são imagens rápidas e persuasivas; ainda que não consigamos decifrar seus significados, estabelecemos com eles uma afeição instantânea. E isto é válido para todas as personagens, mesmo a rosa, a raposa, ou a serpente dourada na areia. Algo nessas imagens despertam simpatia e fascínio. E, sabiamente, o autor articulou sua história para o público de crianças e de adultos igualmente. Esta estratégia faz realmente parte do jogo literário. Cabe ao leitor acolher a parcela do símbolo que mais lhe agrade. E temos aí, então, as reflexões, os usos e igualmente os desvios a partir de um livro como O Pequeno Príncipe. Esta obra sentimental teve seu caráter modificado ao longo dos anos, por inúmeros intérpretes como pela imposição da moda e do marketing - antes, os concursos de beleza e agora as estantes de autoajuda -, o texto muitas vezes lido fragmentariamente como alimento para a chamada criança interior... É interessante pescar essas idealizações, vulgarizando as mensagens do autor. Contudo, não deveríamos lamentar qualquer noção equivocada de infância perdida. Crescemos, ocupamos outra posição perante o mundo e os livros. O que não se poderia esquecer é a criança leitora de hoje em diálogo com a obra. Que divertimento ou aproveitamento moral o Pequeno Príncipe tem para compartilhar com elas, setenta anos depois?"

Peter O. Sagae, doutor em Letras (USP) e comentarista de literatura infantil


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