Folha de S. Paulo


Leia versos que Manoel de Barros fez especialmente para a 'Folhinha'

Na poesia de Manoel de Barros, o canto dos passarinhos, os peixes dos rios e os bichos da mata se transformam em versos.

O poeta faz poesia para gente grande, mas com temas de criança. Na edição deste sábado (20), a "Folhinha" vai trazer um texto sobre o CD "Crianceiras", de Márcio de Camillo, que traz os poemas do escritor em formato de música infantil.

Divulgação
Manoel de Barros em cena do documentário
Manoel de Barros no documentário "Só Dez por Cento é Mentira"

Mas essa não será a primeira vez que Manoel de Barros aparece nas páginas do caderno. Considerado um dos maiores escritores brasileiros, ele escreveu um poema com oito formas poéticas de curtir as férias para a edição da "Folhinha" de 19 de janeiro de 2002.

Nele, o poeta "cata goiaba", vive "aventuras impossíveis" e fala sobre insetos e animais selvagens.

Leia abaixo a poesia escrita por Manoel especialmente para a edição da "Folhinha".

*

OITO FORMAS POÉTICAS DE CURTIR AS FÉRIAS

1

Não posso mais saltar na areia que nem um
lambari que escapasse do anzol.
Não posso mais dançar e dar salto mortal nas chuvas.
Não posso mais subir na goiabeira do vizinho
para catar goiaba.
Agora eu passo as minhas férias a brincar com palavras.
Nesse brincar com palavras, posso até atravessar
o canal da Mancha a nado.
Eu posso até escalar o monte Aconcágua.
Posso até namorar a Vera Fischer.
Eu só precisaria para tanto de usar palavras.
Com elas eu praticarei aventuras impossíveis.

2

Agora,
que fazer com essa manhã desabrochada a pássaros?

3

Hoje eu recebi procuração de um pássaro
para abrir a manhã e fechar o anoitecer.
Fiquei amoroso da natureza com essa distinção.
Não sei se vou dar conta.

4

Estou sentado sobre uma pedra na beira de uma garça.
Ao lado de um rio escorre.
Na outra margem do rio, um cavalo pasta.
Atravesso o rio a nado para a outra margem
onde está o cavalo.
Monto em pelo no cavalo e saímos disparados pelos campos.
Essa aventura só posso fazer com palavras
porque palavra aceita tudo.

5

Nas férias, meus sentidos
funcionam melhor do que a inteligência.
Eu vejo e transvejo tudo.
Os perfumes eu chego a escutar.
Dos sons eu apalpo as formas.
Misturo todos os sentidos.
E assim eu salvo as palavras que estejam
fatigadas de informar.

6

Achei entre os índios terenas daqui a maneira
mais bela e poética de nomear as cores.
É assim:
Vermelho, sangue de arara
Verde, sangue de folha
Amarelo, sangue de sol
Azul, sangue do céu.
Então eu acrescentei: branco, sangue das garças.

7

Um menino tinha abundância de ser feliz.
Mas não era nem alegre.
Quando o menino viu aquela árvore afagar
os seus passarinhos, ele ficou bem alegre
e usou sua abundância de ser feliz.

8

O último brinquedo que eu fiz de palavras
é assim:
O céu tem só três letras.
O sol tem só três letras.
O inseto é maior.


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