Vai ter Copa, mas não se sabe se vai ter música da Copa, aquela que gruda nos ouvidos e na história do evento.
Das muitas criadas para o Mundial, nenhuma caiu na boca do povo –ou dos povos, pois há as internacionais, como as que integram o CD oficial, parceria entre a Fifa e a Sony.
Nessas, o Brasil é pintado nas letras e nos clipes como um fornecedor de exotismos imateriais canibalizado pelos interesses dos donos da bola e da cultura globalizada.
Shakira tenta repetir com "La La La" o sucesso de "Waka Waka" em 2010, na África do Sul. No clipe, ela dança como se recebesse santo, bate tambor, põe esplendor de escola de samba na cabeça: ainda tem índio matando a bola no peito, mulatas se sacudindo e crianças sujas de lama.
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Variações do cenário estão em "We Are One", hino nº 1 do negócio Fifa-Sony. O rapper americano Pitbull põe óculos escuros e veste paletó e calças brancas, posando de rufião ao lado de mulatas, Jennifer Lopez e Claudia Leitte, todas rebolando até o chão.
"A música oficial tem a cara da Fifa, que promove uma espécie de aculturação dos países, padroniza e engessa a festa", critica Edu Krieger, que fez canções contra a Copa.
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Em "Vida", Ricky se cerca de gente bonita na praia. Uns fazem malabarismos com a bola, outros batem com as bundas na câmera. "La vida buena", diz a letra, ecoa "La vida loca", também do cantor.
Também no CD oficial, "Fuleco's Song", ou melhor, "Tatu Bom de Bola", é um milagre de Arlindo Cruz: trata-se de raro samba-empolgação lento. Faz carinho em dois seres desprezados na Copa: o mascote e a boa música.
O desânimo de parte dos brasileiros com a Copa ajuda a explicar o silêncio da torcida. Não por acaso, há canções contra a Copa.
"Brasil em Cartaz", do roqueiro Thiago Correa, "Gigante Pátria", da dupla sertaneja Alex e Gustavo, e "Gigante do Amor", samba gospel interpretado por Fernanda Brum, estão nesse time.
A cantora evangélica diz que a música dos pastores Lucas e Thaísa é "grande oportunidade de falar a verdade", mas dribla o conflito ao dizer à Folha que os brasileiros não devem perder a esperança.
Krieger perdeu a esperança nas manifestações de junho passado. Criou a irônica "Gol da Vitória" e, depois, "Desculpe, Neymar", informando ao atacante que não conseguirá torcer.
"A reação tímida da classe artística é um sintoma de que há algo muito errado. Eu esperava que fosse gerar uma espécie de festival em que artistas competiriam para fazer de suas músicas o hino da Copa, mas isso não aconteceu."
Alguns mostram ânimo na TV, mas mediante cachês. Fernanda Takai e Paulo Miklos para o Itaú; Gaby Amarantos e Monobloco, para a Coca-Cola; Seu Jorge, para a LG.
"Sou otimista só de raiva. Acho que faz parte da democracia trabalhar a favor. Há muitos problemas no Brasil, mas a gente tem que ajudar a construir, não destruir", festeja a mineira Takai.
"Eu respeito a opinião das pessoas, mas a minha é: quero que tudo dê certo", torce a paraense Amarantos.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
REFRÕES DE ONTEM
Pode-se tentar uma correlação entre as mais marcantes músicas de Copa e as épocas em que foram feitas.
"A Taça do Mundo é Nossa", composição de quatro autores que embalou o título de 1958, é marcha alegre, otimista como aquele período.
"Pra Frente, Brasil" (Miguel Gustavo, 1970) é marcha séria, militarizada, trilha da ditadura que apostava na seleção como biombo para esconder torturas e assassinatos.
"Voa, Canarinho", de 1982, é samba bem-humorado, em clima de abertura política e composto por Júnior, um dos craques da época.
Em 2014 predominam as canções patrocinadas, que plantam alegria para colher consumo. Também são resultado de uma época.
LUIZ FERNANDO VIANNA é coordenador de internet do Instituto Moreira Salles