Folha de S. Paulo


A minha Copa: Muamba do tetra criou desencanto, conta Fernando Rodrigues

Editoria de Arte/Folhapress

Repórter de política e de economia, mas apaixonado por futebol, minha principal lembrança da Copa do Mundo de 1994 é sobre como é difícil falar com jogadores de futebol. Difícil no sentido de estabelecer um diálogo não epidérmico com eles.

"O grupo está unido" era um mantra quase único repetido pelos jogadores e pela comissão técnica em resposta a qualquer pergunta.

É preciso aprimorar as jogadas pelas laterais? "Olha, o grupo está unido e vamos fazer o melhor etc." A frase feita encaixava-se em todas as situações. Era duro inovar todos os dias ao escrever.

Por cerca de um mês e meio fiz parte da equipe da Folha escalada para acompanhar o Mundial dos Estados Unidos. O tetracampeonato da retranca e vencido nos pênaltis.

Foram centenas de horas acompanhando treinos, jogos, deslocamentos da comitiva, entrevistas coletivas e festas de jogadores animadas ao som de pagode (tinha um sobre a "barata da vizinha na minha cama" que era de doer; grudava como chiclete). Gosto não se discute. Lamenta-se.

Fanático por futebol, desfrutei da proximidade com os craques da seleção. Só que a sensação foi estranha.

Os ídolos eram muito mais humanos do que eu gostaria que fossem. Tinham mais defeitos do que eu gostaria de imaginar que tivessem. Está errada aquela frase de Caetano Veloso –"de perto ninguém é normal". De perto, todos são bem normais. Com o que têm de bom e de ruim.

Depois daquela Copa do Mundo, há 20 anos, nunca mais assisti a jogos de futebol da mesma maneira.

Como era bom quando eu vivia na ignorância e só idolatrava os jogadores.

No último dia da cobertura veio a pá de cal.

Era 18 de julho de 1994. Uma segunda-feira. No dia anterior, o italiano Roberto Baggio havia errado sua cobrança de pênalti. Chutou a bola nas alturas. A seleção brasileira de futebol havia se tornado novamente campeã depois de 24 anos de seca –a última vez havia sido no México, em 1970, com Pelé e cia.

Escalado para acompanhar o embarque dos campeões, madruguei em frente ao hotel usado pela seleção, em Los Angeles. Estava junto com o excelente repórter fotográfico Pisco Del Gaiso. Não havia jornalistas de outros veículos presentes.

A segurança do local estava relaxada. Entrei no edifício. Vi uma sala cheia de caixas. Geladeira, fogão, aparelho de som, sela para cavalo, bicicleta ergométrica.

Pisco fez "a" foto: o técnico Carlos Alberto Parreira curvado e escrevendo seu nome sobre a embalagem de uma impressora da marca HP. O embarque estava começando. Anotei a jato todos os itens que pude avistar.

Pisco del Gaiso - 19.jul.1994/Folhapress
Em 1994, técnico Carlos Alberto Parreira escreve seu nome sobre a embalagem de uma impressora
Em 1994, técnico Carlos Alberto Parreira escreve seu nome sobre a embalagem de uma impressora

Guardo até hoje o bloco de anotações usado naquele dia. Nos rabiscos é possível ver que o então auxiliar técnico, Mário Jorge Lobo Zagallo, comprara uma churrasqueira a gás. O lateral esquerdo Branco equipou sua cozinha inteira.

No dia seguinte, uma terça-feira, dia 19 de julho, muitos jornais abriram sua cobertura anunciando a chegada da seleção. Na Folha, a manchete esportiva foi mais substancial: "Seleção volta ao Brasil 'carregada'".

O retorno dos tetracampeões ficou conhecido como o "voo da muamba". Os jogadores e a comissão técnica se irritaram. O então secretário da Receita Federal, Osíris Lopes Filho, quis impedir a entrada dos equipamentos sem o devido pagamento de impostos. Uma ordem presidencial o desautorizou. Osíris perdeu o cargo.

Os jogadores ficaram com suas muambas. Mais humanos do que nunca. E eu com um certo travo de desencanto.

Fernando Rodrigues/Divulgação
Anotações de Fernando Rodrigues mostram as compras feitas pelos integrantes da seleção brasileira durante a Copa de 1994
Anotações de Fernando Rodrigues mostram as compras feitas pelos integrantes da seleção brasileira

O texto de Fernando Rodrigues, repórter especial da Folha, integra a série "A Minha Copa", publicada aos domingos. Leia os textos anteriores em www.folha.com.br/folhanacopa


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