Folha de S. Paulo


Como diário de químico pode agravar punição à Rússia por casos de doping

Hilary Swift/The New York Times
Diário de químico Grigory Rodchenkov

O químico manteve um diário por quase toda sua vida. O hábito dele era registrar os lugares a que ia, com quem conversava e o que comia. No topo de cada anotação, ele registrava sua pressão sanguínea.

Dois dos cadernos de capa dura em que ele mantinha esse registro, com o ano a que se referem gravado na capa e anotações manuscritas com uma caneta Waterman, se tornaram provas cruciais que podem resultar em que a Rússia seja excluída da próxima olimpíada.

O químico em questão é Grigory Rodchenkov, que dedicou anos a ajudar os atletas russos a ganharem vantagem por meio de substâncias proibidas. Os diários dele sobre 2014 e 2015 – seus dois anos finais como diretor do laboratório antidoping russo, antes de fugir para os Estados Unidos – oferecem novos detalhes sobre as elaboradas trapaças da Rússia na mais recente olimpíada de inverno, e sobre a dimensão do envolvimento do governo e dos dirigentes olímpicos russos na trama, pelo menos de acordo com Rodchenkov.

As anotações que ele fez no período, vistas com exclusividade pelo "New York Times", tratam de uma questão crucial para os dirigentes olímpicos: o envolvimento do Estado em uma imensa fraude esportiva. Nos últimos dias, se tornou claro que o Comitê Olímpico Internacional (COI) está convencido de que as anotações são verdadeiras, e elas provavelmente contribuirão para a decisão de impor penalidades severas que a organização provavelmente tomará.

As autoridades olímpicas anunciarão a decisão em 5 de dezembro. Se não excluírem a Rússia completamente da Olimpíada de Inverno de Pyeongchang, na Coreia do Sul, em 2018, é provável que excluam dos jogos os emblemas russos. A bandeira da Rússia não seria desfraldada nas cerimônias de abertura e encerramento e os atletas do país competiriam em uniformes neutros; o hino russo não seria tocado. Restrições como essas, disseram as autoridades russas, equivaleriam a uma exclusão, e a Rússia consideraria boicotar os jogos de 2018.

Hilary Swift/The New York Times
Químico Grigory Rodchenkov anotou detalhes de sua atuação em diário

"A Comissão Disciplinar não considera provável que essas páginas tenham sido reescritas ou que, na época, o Dr. Rodchenkov tenha representado a realidade indevidamente", afirma um documento do COI publicado na segunda-feira (27). "Essas anotações podem, portanto, ser consideradas como elemento de prova significativo".

Em companhia de depoimentos formais de Rodchenkov, os diários detalham discussões específicas sobre trapaças que ele manteve com autoridades e dirigentes esportivos importantes, entre os quais Vitaly Mutko, então ministro do Esporte russo e hoje primeiro-ministro assistente do país; Yuri Nagornykh, antigo ministro assistente de Mutko e membro do Comitê Olímpico Russo; e Irina Rodionova, antiga diretora assistente do centro de preparação esportiva das equipes nacionais russas.

Além dessas importantes conversas, Rodchenkov registrava os detalhes corriqueiros de sua vida – atividades simples como a compra de uma barra de chocolate Bounty no mercado central de Sochi, ou de um remédio contra resfriados para Thierry Boghosian, o inspetor internacional de laboratórios que jamais detectou as violações gritantes das normas de teste de doping praticadas pela Rússia, durante as três semanas dos jogos.

Em 13 de janeiro de 2014, Rodchenkov escreveu que Aleksey Kiushkin, assistente de Rodionova, lhe havia levado um coquetel de drogas conhecido entre os dirigentes esportivos como "duquesa" - uma mistura de três anabolizantes com vermute Martini. Rodchenkov criou a fórmula da bebida para consumo pelos principais atletas russos durante a olimpíada, e Rodionova cuidou de sua preparação e distribuição aos treinadores e atletas.

"Kiushkin chegou com toneladas de notícias. Também trouxe um Martini fresquinho, que eu tomei na hora", escreveu Rodchenkov, que costumava testar drogas em si mesmo e documentar os efeitos.

Na semana seguinte, com a aproximação dos jogos de Sochi, além de expressar admiração pelo seu novo smartphone Samsung e críticas à comida do refeitório olímpico, Rodchenkov registrou sua frustração por as autoridades não terem delineado seus planos para levar de Moscou a Sochi centenas de frascos contendo urina limpa que os principais atletas russos haviam recolhido durante meses em potinhos de comida para bebês e garrafas de refrigerante - urina que teria papel central naquilo que o químico costumava descrever como "o plano Sochi".

Hilary Swift /The New York Times
Diário de Grigory Rodchenkov, que dirigiu laboratório antidoping da Rússia

"Não há compreensão clara do plano; é um verdadeiro pesadelo!", ele escreveu em 29 de janeiro, um dia depois que dois atletas importantes do biathlon russo foram apanhados em um exame antidoping na Áustria. "Mutko está pirando por causa do biathlon; as coisas estão fora de controle e caóticas".

Em 1º de fevereiro, ele seguiu as instruções que Nagornykh, ministro assistente do Esporte, lhe havia dado no hotel Azimut na noite anterior. Rodchenkov inspecionou o edifício adjacente ao seu laboratório, controlado pelo Serviço Federal de Segurança, ele anotou. A urina estocada havia chegado a Sochi e estava armazenada clandestinamente no local, ele escreveu, mas Rodchenkov estava enraivecido porque as amostras não haviam sido separadas por esporte e nem armazenadas seguindo a ordem alfabética do nome dos atletas.

"Nada está pronto por aqui", ele escreveu. "Acabei de fazer uma lista completa".

Em 3 de fevereiro, quatro dias antes da abertura dos jogos de Sochi, os preparativos de Rodchenkov culminaram com uma apresentação a Mutko, o ministro do Esporte. Em uma reunião com Mutko em seu escritório na sede do comitê organizador, escreveu Rodchenkov naquele dia, ele entregou ao ministro a "lista duquesa", na qual identificava as dezenas de membros da equipe olímpica russa que estavam usando o coquetel de doping, e que teriam suas amostras de urina incriminadoras trocadas por urina limpa armazenada previamente.

Na reunião, de acordo com as anotações de Rodchenkov, o ministro sugeriu que o laboratório olímpico continuasse aberto depois dos jogos, como um centro para experiências com novas formas de doping.

"Nós tratamos de todas as questões", escreveu Rodchenkov em 3 de fevereiro, apontando que estava em pé desde as 6h20min para se preparar. "Ele quer preservar Sochi como instalação de reserva".

Cinco dias depois, no hotel Azimut em Sochi, o ministro voltou a questionar Rodchenkov, instruindo-o a apresentar um pedido por escrito para manter o laboratório em funcionamento, o que Rodchenkov fez naquela noite, enquanto tomava seu chá, ele escreveu em 8 de fevereiro.

Depois que diversos relatórios de investigação foram publicados, no ano passado, a operação coordenada de trapaça da Rússia passou a ser aceita como fato entre os principais dirigentes olímpicos, apesar da contestação forte das autoridades russas, que se intensificou ainda mais nas últimas semanas. A Rússia apresentou acusações criminais contra Rodchenkov, por abuso de autoridade, algumas semanas atrás, e anunciou que solicitaria sua extradição. As autoridades anteriormente haviam confiscado o imóvel dele em Moscou, onde sua família continua a viver.

As autoridades russas deram a entender que Rodchenkov agiu sozinho para adulterar mais de 100 amostras de urina incriminadoras em Sochi, um ato que até agora levou as autoridades olímpicas internacionais a retirar 11 medalhas de atletas russos.

"Não se pode retirar uma vitória que já foi conquistada", disse um porta-voz do Kremlin na segunda-feira, sobre essas desclassificações.

O presidente Vladimir Putin vem contestando fortemente que tenha havido envolvimento do Estado, o que pode representar a diferença entre a exclusão completa dos atletas russos e uma pena menor, como a proibição de que o hino russo seja executado nos jogos de 2018.

Mas as consequências devem ir além dos jogos de inverno, já que as trapaças generalizadas confirmadas pelos investigadores se estenderam por muitos anos, temporadas e esportes - como Rodchenkov detalhou no seu diário, em relatos de discussões com poderosos dirigentes esportivos russos.

Rodchenkov estava assistindo televisão em 8 de janeiro de 2014 quando o ministro assistente ligou para repreendê-lo depois que uma estrela do atletismo, Elena Lashmanova, foi apanhada em um exame antidoping. "Nagornykh ligou - está furioso com todo mundo", escreveu Rodchenkov,. "Fui ao ministério, esperei por Nagornykh e tivemos uma conversa de duas horas sobre os detalhes dos preparativos para Sochi".

Meses mais tarde, em 14 de março de 2014, Rodchenkov escreveu que estava sentado em seu carro, carregando o celular, enquanto conversava com Mutko, que ligou "para me dar uma bronca" por ele não ter encoberto efetivamente o uso de drogas por Lashmanova.

Em 21 de abril de 2014, Rodchenkov discutiu com Nagornykh se deveria ou não falsificar o histórico da estrela do atletismo, o que o ministro assistente propunha mas Rodchenkov temia viesse a atrair a atenção das autoridades regulatórias internacionais e colocar em risco o credenciamento de seu laboratório, ele afirmou.

"Ele voltou muito bronzeado do México", escreveu Rodchenkov depois de uma reunião de três horas com Nagornykh naquele dia. "Passei 90 minutos lá brigando. Nagornykh foi recuando aos poucos. Concordamos em conversar com Mutko às 13h".

Lashmanova foi suspensa em julho de 2014.

No ano passado, depois que uma investigação inicial solicitada pela agência internacional de combate ao doping no exporte confirmou o relato de Rodchenkov, o governo russo demitiu Nagornykh, Rodionova e Natalia Zhelanova, consultora do Ministério de Esporte russo sobre questões antidoping. Putkin promoveu Mutko a primeiro-ministro assistente em outubro de 2016.

Em entrevista ao "New York Times" no ano passado, Mutko se distanciou de Rodchenkov, dizendo que seu assistente, Nagornykh, é que havia administrado os preparativos para Sochi.

Mas durante os jogos Rodchenkov documentou numerosas refeições em companhia de Mutko, e parecia bem próximo dele, de acordo com suas anotações. "Comi as uvas de Mutko", ele escreveu em 17 de fevereiro, depois de um almoço no qual ele já havia comido filé de peixe e sopa de cordeiro. "Todo mundo está exausto".
Rodchenkov e seu advogado dizem que as anotações dos diários deixam claro que ele era só um soldado em um sistema controlado pelos níveis mais altos do Estado. Documentos publicados na segunda-feira pelo COI indicam que a organização aceita essa versão.

"O Dr. Rodchenkov estava dizendo a verdade ao oferecer explicações sobre o esquema de acobertamento que ele administrou", escreveram as autoridades olímpicas na primeira decisão disciplinar relacionada ao escândalo de doping russo, justificando a exclusão completa das atividades olímpicas do 19º atleta russo a ser disciplinado até agora pela trapaça em Sochi.

Embora não esteja claro se toda a equipe russa será penalizada pela trapaça, Thomas Bach, presidente do COI, deu a entender este mês que as sanções que o órgão está por anunciar serão mais severas que as impostas antes da Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016, da qual mais de 100 atletas foram excluídos.

"Estamos falando da manipulação do sistema antidoping dos jogos olímpicos", disse Bach em entrevista ao "New York Times". "Estamos falando dos nossos testes, e do nossa laboratório para os jogos olímpicos, e portanto nossa posição agora é muito diferente", do que era antes dos jogos do Rio. "Nossa função não é deixar todo mundo feliz", disse Bach. "Nossa função é aplicar sanções de maneira proporcional e apropriada".

Rodchenkov está vivendo nos Estados Unidos, em local não revelado, sob proteção das autoridades norte-americanas. Seu advogado disse que ele havia cooperado plenamente com as agências norte-americanas e internacionais quanto ao programa de doping russo.

"Se o COI não agir e não punir severamente esse ataque frontal à integridade da olimpíada, perderá para sempre sua autoridade moral para punir quaisquer trapaceiros", disse o advogado, Jim Walden, do escritório Walden, Macht and Haran.

Rodchenkov disse ao "New York Times" no ano passado que havia registrado os detalhes de seu trabalho em Moscou, pensando no futuro, mas que não o fez em um computador, ao contrário de seu amigo Nikita Kamayev, antigo diretor da agência antidoping russa que morreu subitamente em 2016. Foi Kamayev que deu a Rodchenkov a caneta Waterman dourada e preta que ele usava em seus diários.

Rodchenkov atribuiu a morte súbita de Kamayev ao seu anúncio de que estava escrevendo um livro, e disse que tentou dissuadi-lo.

"Eu disse a ele que não estava escrevendo com um computador", disse Rodchenkov em maio de 2016. "E que estava escrevendo com a caneta que ele me deu".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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