Folha de S. Paulo


Cooptado pelo Estado, futebol se popularizou no regime comunista

Margaret Bourke-White/The LIFE Picture Collection/Getty Images
Dois Pvts do Exército Vermelho. sentado na primeira fila w. milhares de outros russos no Dynamo Stadium, assistindo um jogo de futebol entre Dynamo Team & Red Army Team (apenas nome, não conectado ao Exército
Soldados do Exército Vermelho soviético assistem a jogo no estádio do Dínamo de Moscou, em 1941

Quando a revolução eclodiu na Rússia em 1917 o futebol já era jogado no país. Assim como em outros locais do mundo, foi introduzido pelos britânicos tendo como marco no Império Russo o ano de 1892, com a primeira equipe fundada em 1894. No período soviético é que o esporte se popularizou no país.

"Antes da revolução, o futebol não era um esporte de massa. Os praticantes e espectadores faziam parte da classe média urbana e da comunidade de expatriados que viviam na Rússia", afirmou à Folha o americano Robert Edelman, professor de História da Rússia e do Esporte na Universidade de San Diego (EUA) e autor de "Uma Pequena Maneira de Dizer Não", sobre o clube Spartak, de Moscou.

No regime comunista, o futebol foi cooptado pela máquina estatal para afirmar elementos nacionais e suas instituições. O ditador Josef Stálin (1878-1953) não era um fã do esporte, mas soube usá-lo a seu favor.

"Uma vez encerrada a Guerra Civil em 1921, o futebol começou a construir sua popularidade. Em alguns casos, as equipes funcionavam como pequenas empresas privadas, o que era legal no início anos 20, de acordo com o proposto por Lenin. Quando [Josef] Stálin aboliu o Novo Plano Econômico e impôs controles econômicos mais rígidos, patrocínios de grandes e poderosas instituições políticas se fizeram necessários", disse Edelman.

O PODER DAS ARMASOs principais times ligados ao exército durante a URSSOs principais times ligados à polícia

A influência do regime e de empresas controladas pelo Estado foi forte e contínuo durante as décadas de 1920 e 1930. De início, nomes e símbolos das equipes foram alterados para colocar em evidência as organizações estatais.

O primeiro e mais marcante caso foi o do Orekhovo, criado em 1887 no distrito de mesmo nome em Moscou por dois ingleses operários do setor têxtil que possuíam uma fábrica. Em 1923, por obra de Felix Dzerzhinsky chefe da NKVD, a polícia secreta soviética precursora da KGB, o clube passou a se chamar Dínamo Moscou e a ser financiado pelo Ministério do Interior. Vários times com nome "Dínamo" surgiram em datas próximas nas maiores cidades da URSS como Kiev (UCR), Minsk (BLR) e Tbilisi (GEO).

Em Moscou, o Exército passou a controlar e fomentar o CSKA e outros clubes soviéticos. E surgiram times ligados aos mais diversos setores no qual o Estado estava presente, sendo os principais o Lokomotiv (empresa ferroviária), Zenit (companhia de eletricidade de Leningrado), Torpedo (indústria de automóveis) e o Krylia Sovetov (indústria de aviões).

O único clube que não tinha nenhuma ligação com o Estado era o Spartak Moscou, que se chamava anteriormente Krasnaya Presnya, em relação ao distrito onde foi fundado, e depois Promkooperatsiya, em referência à cooperativa industrial.

Ele teve seu nome alterado em 1935 para fazer referência a Spartacus, um escravo gladiador que liderou uma legião de rebeldes contra Roma. Ficou conhecido como o clube do povo e foi o maior símbolo de resistência.

"Em uma nação comunista o clube de futebol para o qual você torcia era uma comunidade à qual você escolhia pertencer. O regime não te manda para apoiar uma ou outra equipe. Talvez fosse a sua única chance de escolher uma comunidade e poder se unir a outros que pensavam como você. Era uma oportunidade rara de se sentir livre", afirmou o antropólogo Levon Abramian em entrevista publicada pelo jornalista Simon Kuper no livro "Futebol Contra o Inimigo".

Com o controle estatal e o surgimento de cada vez mais equipes, o futebol se tornou profissional em 1936. Veio então a criação da liga soviética, primeiramente concentrada na Rússia, mas depois expandida para as outras 14 repúblicas.

A liga durou até a dissolução da União Soviética em 1991. Só não foi disputada entre as temporadas de 1941 e 1944 por causa da 2ª Guerra Mundial. Com 13 títulos, o Dínamo de Kiev foi o maior vencedor, seguido pelo Spartak, com 12, e o Dínamo de Moscou, com 11.

ERA DOS MAGNATAS

O fim da URSS não significou apenas a imposição de fronteiras e o surgimento de nações independentes. Trouxe mudança profunda ao futebol. O Estado já não tinha mais fôlego nem interesse para fomentação dos clubes, assim como empresas e sindicatos. Foi neste momento que os clubes passaram a ser privados, controlados por grandes grupos, magnatas e oligarcas.

"A extinção das antigas empresas estatais deixou um vazio no mercado que seria preenchido sobretudo por ex-burocratas, traficantes do mercado negro, diversos funcionários comunistas que se converteram rapidamente em homens de negócio, membros da nova elite politica, os 'novos russos', uma classe de homens imensamente ricos", escreveu o historiador britânico Jim Riordan em "Entrar no Jogo: pela Rússia, pelo dinheiro e pelo poder".

Maxim Shemetov/Reuters
Soccer Football - Champions League - CSKA Moscow vs FC Basel - VEB Arena, Moscow, Russia
Torcida do CSKA em jogo da Liga dos Campeões contra o Basileia, da Suíça, na quarta-feira (18)

Um desses novos investidores foi Roman Abramovich, hoje dono do Chelsea. Por meio da petrolífera Sibneft, ele investiu no CSKA entre 2004 e 2006. Em 2005, o time ganhou a extinta Copa da Uefa.

O único que segue fiel às origens é o Lokomotiv, cuja proprietária é a empresa estatal Ferrovias Russas, conhecida pela sigla RZD.

"Às vezes participamos de alguns eventos, mais relacionado ao marketing da empresa. Mas não com frequência. O mais recente foi na inauguração de uma nova linha de trem que foi construída em volta do centro da cidade", disse à Folha o goleiro brasileiro naturalizado russo Guilherme Marinato.

"Os torcedores sabem a relação que seus times tinham com o Estado, mas hoje isso não influencia absolutamente nada. Os apelidos ainda ficaram, como de policiais para o Dínamo e militares para o CSKA, tanto que nós jornalistas ainda os usamos em nossos textos e os torcedores possuem algumas faixas", disse o repórter russo Grigory Telingater, do site Championat.

CLUBE DA POLÍCIA X TIME DO POVO

O futebol na era soviética deve grande parte de seu desenvolvimento e popularidade ao clássico moscovita entre Dínamo e Spartak. O jogo resumia o choque entre o clube da polícia e o time do povo, respectivamente.

A rivalidade entre eles começou a se acirrar em 1935, quando Nikolai Starostin, jogador de enorme sucesso no país, que já havia capitaneado as seleções de futebol e de hóquei, resolveu assumir o controle do então Promkooperatsiya. Ao lado de seus três irmãos, o renomearam Spartak.

Ao mesmo tempo, Starostin se aproximou de Alexander Kosarev, chefe da Komsomol [organização da juventude do Partido Comunista]. O órgão disputava o controle do esporte com as forças de segurança, que tinham no Dínamo seu maior expoente. O clube teve a partir de 1936 como presidente honorário o georgiano Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta (NKVD) e braço-direito de Josef Stálin (1878-1953).

RIA Novosti
Jogadores de futebol soviéticos, participantes da primeira partida entre funcionários franceses e da União Soviética. O capitão da equipe soviética Pyotr Artemyev (2da esquerda) segurando um banner
Jogadores de futebol soviéticos que participaram de partida contra trabalhadores franceses, em 1926

Beria foi o responsável pela prisão em 1938 de Kosarev, que seria executado. Depois disso, passou a perseguir os irmãos Starostin. Sua fúria aumentava à medida que o Spartak vencia -foram três títulos da liga soviética, contra dois do Dínamo em cinco edições.

A popularidade alcançada pelo clube forjou a alcunha de "Time do Povo".

A equipe era formada por trabalhadores simples que vinham das camadas populares, enquanto os atletas rivais tinham cargos administrativos e patente militar.

"O Spartak pode ter provocado um antagonismo de classes, mas era popular por uma razão muito mais convencional: o time era bom", escreveu o historiador norte-americano Robert Edelman no livro "Uma Pequena Maneira de Dizer Não".

Um episódio que deixou Beria ainda mais furioso ocorreu na semifinal da Copa Soviética de 1939 quando o Spartak venceu o Dínamo Tbilisi por 1 a 0 com um gol polêmico e avançou para a final, superando o Leningrad Stalinets por 3 a 1.

Mesmo após a decisão, ordens vindas do governo forçaram a realização de nova partida entre Spartak e Dínamo. Nova vitória do time de Starostin por 3 a 2.

A rivalidade só aumentava. Em 1942, Nikolai e seus irmão foram presos e acusados de diversos crimes. De acordo com as autoridades, eles estavam impondo práticas burguesas no esporte, aproximando-o do capitalismo. Outro processo os apontava como conspiradores de um plano para assassinar Stálin.

Como pena, foram condenados a dez anos em campos de trabalho forçado na Sibéria. Em 1955, dois anos após a morte de Stálin e a execução de Beria, Kosarev voltou a Moscou e presidiu o Spartak até 1992. Morreu quatro anos depois.

Após o fim da União Soviética, o Dínamo perdeu muito de seu poderio e na "nova Rússia" jamais voltou a ganhar um título nacional. Na temporada 2016/2017, pior: jogou a segunda divisão pela primeira vez.
Já o Spartak se manteve como grande e ganhou mais dez títulos nesta nova era.


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