Folha de S. Paulo


Jovens em situação de risco buscam gols e mudança de vida na Noruega

Ao olhar no rosto dos seus jogadores, Pupo Fernandes, 43, sabe quais são os sonhos deles. Não cabe a ele bolar esquemas táticos ou analisar desempenhos. O objetivo é manter o foco e prepará-los para um mundo que está além do universo do futebol.

"Todos querem ser profissionais. Pode acontecer, mas a gente sabe que pela idade deles é difícil. Vamos expandir os horizontes, prepará-los para buscar uma profissão, estudar, fazer um curso."

Fernandes é treinador da seleção brasileira de futebol social há 13 anos. A partir desta terça (29), ele, seis garotos e duas garotas embarcam para a Noruega. Em Oslo, vão disputar a Homeless World Cup. A tradução para o português é "Copa do Mundo dos Sem-Teto", mas essa referência não está correta.

O torneio reúne 50 equipes compostas por mais de 500 jogadores que vivem em situações de risco. No caso brasileiro, o recrutamento ocorreu em seletivas feitas em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, por meio do projeto da ONG Futebol Social, que atua em comunidades carentes.

Diego Padgurschi/Folhapress
SAO ROQUE, SP, BRASIL 22-08-2017: (da esq. p dir.) Leonardo Garcia, 21, Andreza Castro, 19, Felipe Campos, 17, Lionel Campos, 17 (goleiro), Murilo Oliveira, 21, Igor Oliveira, 19, Juliana Conceição, 17, e Mickael Batista, jogadores da Selecao Brasileira de Futebol Social treina para disputar a Copa do Mundo Homeless na Noruega no fim do mes. (Diego Padgurschi /Folhapress - ESPORTE) *** EXCLUSIVO***
Equipe que representará o Brasil na Copa do Mundo dos Sem-Teto, na Noruega

"Nós trabalhamos em regiões com problemas de violência, drogas, moradias precárias. Não adianta ser bom de bola se não estiver nessas condições", diz Fernandes.

A competição é anual. No ano passado, em Glasgow, o Brasil foi vice-campeão. Perdeu para o México. O país tem dois títulos, em 2010 e 2013.

O craque na campanha do último título era Darlan, 23, inspiração para o grupo atual. Depois do torneio, ele assinou contrato com um empresário, treinou no Flamengo e hoje está no Arendal, da segunda divisão da Noruega.

"A gente quer ganhar, claro. Mas é um trabalho psicológico, para a autoestima deles. Para que percebam que são capazes", diz o treinador.

Mas não é assim que os jogadores veem a competição.

Para eles e elas, é chance de aparecer. O torneio tem chamado a atenção. Os jogos são transmitidos ao vivo pelo YouTube. Fernandes faz de tudo para prepará-los para a volta ao Brasil, quando é possível que o reconhecimento que receberam por fazerem parte da competição acabe.

"Quero ser campeão e que alguém me veja. Ainda desejo ser jogador. Não ter empresário dificulta bastante", diz Leonardo Garcia, 21, morador do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O Léo, como é conhecido, passou 15 dias ao lado de sete jogadores da seleção treinando em São Roque (72 km de São Paulo).

Fernandes coloca muita fé no garoto, o mais experiente do grupo. Ex-jogador do CFZ, time formado por Zico, ele disputou campeonatos nos Emirados Árabes e na Austrália. Foi quem esteve mais perto de sentir o gosto do que é ser profissional. Deixou mãe, pai, 11 irmãos e a namorada Rafaela no Rio para passar o período de treinos em São Roque antes da viagem a Oslo.

"Minha mãe e a namorada ficaram chorando", lembra.

Foi Rafaela quem o acompanhava um sábado à tarde no Alemão, quando, ao caminharem pela rua, Léo sentiu queimar a região abaixo do braço direito. Ele foi atingido por uma bala perdida.

"Graças a Deus me recuperei. Por isso que quero tanto dar certo no futebol. Para dar uma vida mais tranquila para os meus pais", afirma.

SONHO AMERICANO

O Brasil queria montar a equipe masculina e a feminina, mas faltou verba. Como o regulamento permite, a seleção terá um time misto, com duas atletas na delegação. Os jogadores devem ter mais de 16 anos. Não há limite máximo, mas a ONG brasileira optou por jovens de até 21 anos.

Para as garotas, o sonho de jogar futebol é mais palpável pelo histórico. Há casos de jogadoras que se destacaram e foram para os EUA, com bolsas em universidades.

Andreza Castro Guedes, 19, está de olho nisso. Sabe ser possível, mas não deixou de se surpreender quando foi selecionada representando um time de Santos (80 km de São Paulo), onde mora. Ela cansou de ser chamada de Maria Moleque porque jogava futebol com os meninos nas ruas do bairro Jardim Castelo.

"Nunca me importei. Jogar futebol me traz paz de espírito. O que quero na viagem é ser campeã e abrir portas. Desejo uma oportunidade", diz Andreza, assim como todos.

No torneio, o campo e os gols são menores do que no futebol tradicional. Não tem lateral, e os times jogam com quatro na linha e o goleiro. Um dos jogadores precisa ficar sempre no ataque.

Para cobrir parte dos custos, a seleção é patrocinada pela CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo). A Penalty cede o material esportivo.


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