Folha de S. Paulo


Sem clube, atleta que protestou em hino dos EUA inspira manifestações

O jogador mais comentado da NFL, principal liga de futebol americano dos EUA, pode nem mesmo entrar em campo nesta temporada.

Colin Kaepernick, 29, ex- quarterback do San Francisco 49ers, o jogador em questão, causou controvérsia na temporada passada ao se ajoelhar durante a execução do hino nacional antes dos jogos, em protesto contra a brutalidade policial e a opressão racial. Ele inspirou diversos outros jogadores a seguir seu exemplo e realizar gestos semelhantes, causando debate e discussão sobre a participação de atletas no diálogo político público, e em que grau ela pode ou deve ocorrer.

Mas agora, com os clubes se preparando para a abertura da temporada regular em 7 de setembro, Kaepernick está sem time e, embora não venha demonstrando a mesma forma que exibiu ao levar os 49ers ao Super Bowl, quatro anos atrás, muitos analistas acreditam que os times estejam se recusando a contratá-lo por sua posição política.

Em um país preocupado com as divisões raciais, os protestos de Kaepernick foram além do futebol americano e levaram mais e mais pessoas a se pronunciar.

Nesta quarta-feira (23), uma dúzia de organizações, entre as quais a Justice League NYC e a Color of Change, realizaram um protesto em apoio a Kaepernick diante da sede da NFL em Nova York.

Ainda que não esteja entre os organizadores do protesto, o cineasta Spike Lee tuitou seu apoio à manifestação.

"Não organizei ou montei esse protesto", ele escreveu. "Mas continuo a apoiar meu irmão e sua postura quanto às injustiças dos EUA."

A organização de combate à discriminação racial NAACP quer se reunir com Roger Goodell, comissário da NFL, para discutir a ausência de Kaepernick da liga.

"Nenhum jogador deveria ser excluído ou sofrer discriminação por exercitar a liberdade de expressão. Fazê-lo constitui violação de direitos constitucionais e dos regulamentos da NFL", afirmou Derrick Johnson, presidente interino da NAACP.

Goodell insistiu em que os 32 clubes da liga não estão boicotando Kaepernick, que optou por cancelar seu contrato com os 49ers em março.

Na segunda (21), aconteceu o maior protesto realizado em campo até o momento, quando uma dúzia de jogadores do Cleveland Browns se ajoelhou durante o hino, enquanto outros atletas se posicionavam ao lado deles em demonstração de solidariedade. Ao contrário do ano passado, quando Kaepernick e apenas alguns poucos jogadores negros se recusavam a ouvir o hino em pé, o grupo incluía atletas brancos.

Ken Blaze/USA Today Sports
Inspirados em Kaepernick, atletas do Cleveland Browns fazem protesto antes de jogoda pré-temporada da NFL
Inspirados em Kaepernick, atletas do Cleveland Browns fazem protesto antes de jogoda pré-temporada da NFL

A questão coloca Goodell na desconfortável posição de defender proprietários e treinadores que ofereceram justificativas absurdas para não contratar Kaepernick, que, ao contrário de cerca de duas dúzias dos quarterbacks que estão ativos na liga, já levou um time ao Super Bowl.

De Baltimore a Miami e Seattle, times que precisam de um quarterback titular ou reserva contrataram jogadores inexperientes ou de histórico dúbio, e tiveram de explicar, muitas vezes de maneira incômoda, por que preteriram Kaepernick. O Miami Dolphins, por exemplo, convenceu Jay Cutler, um atleta de carreira errática e que havia anunciado sua aposentadoria, a retornar aos campos.

O jogador, e a controvérsia que ele causou, são apenas o percalço mais recente em uma série de dores de cabeça para Goodell e a NFL, que já ficaram sob os holofotes pela forma como conduziram casos envolvendo violência doméstica praticada por atletas, pelo tratamento dado a incidentes de concussão entre os atletas, e por sua postura severa quanto ao uso de maconha, que segundo alguns jogadores representa alternativa mais segura de tratamento que os analgésicos receitados pelas equipes, que podem causar dependência.

O debate sobre a postura que os atletas durante a execução do hino, no entanto, talvez seja a questão mais explosiva para a NFL. A liga celebra o patriotismo e o serviço militar de maneira muito mais intensa do que outras organizações esportivas. Os protestos dividem os torcedores de maneira que raras outras questões fazem, e mostraram sinais de que podem prejudicar os lucros da liga.

Os índices de audiência de um dos parceiros televisivos da NFL caíram no ano passado pela primeira vez, e embora existam outros motivos para o declínio -como a eleição presidencial e a ausência de astros como Peyton Manning-, alguns torcedores declararam ter deixado de assistir aos jogos por causa dos protestos dos jogadores.

A controvérsia continua, já em seu segundo ano, e mais fãs que buscam o esporte como forma de escape podem deixar de assistir aos jogos.

Andrew McCarthy, colaborador da "National Review" e ex-procurador público federal, parecia representar muitos torcedores insatisfeitos ao tuitar esta semana que os protestos durante o hino reduziam seu interesse por assistir aos jogos da NFL.

"Sou parecido com os milhões de pessoas que gostam do futebol americano como forma de escapar da política, mas deixarei de gostar caso isso não seja mais possível", justificou em sua postagem.

Goodell disse diversas vezes, por exemplo em evento em que conversou com torcedores do Detroit Lions, que não existe esforço coordenado para impedir a contratação de Kaepernick, e que se um time precisar de um quarterback com as habilidades dele, deve contratá-lo.

"Creio que cada um de nossos times fará o que servir melhor aos seus interesses para colocar em campo uma equipe vencedora", afirmou.

No evento, ele também teve de assumir uma posição delicada, expressando apoio aos atletas que estão protestando, mas também apaziguando torcedores que se opõem a eles. Goodell tentou enquadrar os protestos como uma forma de os atletas mostrarem o quanto se importam com suas comunidades.

Keith Sirois, executivo de um restaurante e torcedor dos Lions não considerou a resposta do comissário convincente. Questionou por que a liga restringe a maneira como os jogadores celebram touchdowns, mas não os obriga a assumir uma posição de respeito quando o hino nacional é executado. Sirois disse que não se opõe às mensagens dos jogadores, só prefere não vê-las durante o jogo.

O ritmo dos acontecimentos pode ter escapado ao controle de Goodell. O número de jogadores que se ajoelham durante a execução do hino aumentou. E há rumores sobre protestos mais amplos depois dos acontecimentos em Charlottesville, onde neonazistas entraram em conflito com grupos antifascistas, neste mês. Isso ajudou a reanimar uma questão que a NFL esperava ver desaparecer.

"Isso certamente se tornou parte importante das conversas sobre a NFL e a atual temporada", disse Daniel Adshead, torcedor dos Browns que apoia os protestos.

"Creio que a questão causaria menos controvérsia se Colin Kaepernick tivesse encontrado um time. As pessoas parecem gostar do status quo e não gostam de ver mudanças e instabilidade."

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


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