Folha de S. Paulo


'Dinheiro público investido nos Jogos beneficiou o Rio', diz Nuzman

O carioca Carlos Arthur Nuzman, 75, encarou um desafio raro na última década. Planejou, organizou e realizou a Olimpíada do Rio.

Neste sábado (5), a abertura da primeira edição dos Jogos Olímpicos na América do Sul vai completar um ano. O evento custou cerca de R$ 42 bilhões. A maior parte da verba foi usada na construção de arenas e em obras de mobilidade urbana pelo Rio.

Presidente do comitê organizador, Nuzman gastou cerca de US$ 2,8 bilhões (R$ 8,7 bilhões) somente com a operação dos Jogos e tem que administrar um rombo de R$ 130 milhões nas contas do órgão.

Em entrevista à Folha na sede do COB (Comitê Olímpico Brasileiro), que comanda há mais de duas décadas, Nuzman defendeu o legado dos Jogos, que classifica como "extraordinário".

Ele disse também que não mudaria o projeto e contou que não se sente culpado por ter organizado o evento em meio à grave crise financeira.

"Pelo contrário. O dinheiro público investido foi usado em benefício da cidade", afirma o dirigente carioca.

A realização dos Jogos teve a participação de empresários e políticos investigados e presos pela Lava Jato. Mesmo assim, Nuzman diz que "graças a Deus" nunca recebeu oferta de suborno nos contratos olímpicos e nega que a escolha do Rio como sede tenha acontecido graças a esquema de compra de votos.

A Justiça francesa investiga dois ex-integrantes do COI (Comitê Olímpico Internacional) por supostamente terem recebido propinas para votar no Rio em 2009.

"Quem ganhou por 66 a 32 votos [de Madri na final], não pode ter tido compra de votos", disse o ex-atleta.

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Folha - Um ano depois, qual a lição que o senhor tira dos Jogos aqui no Brasil?
Carlos Arthur Nuzman - Os Jogos Olímpicos foram o maior evento que o país já teve. Foi reconhecido pelo COI, que disse que os Jogos foram maravilhosos na cidade maravilhosa. O evento trouxe uma grande lição para o mundo que não frequenta os Jogos. O Rio abriu essa porta para novas oportunidades.

Outro ponto fundamental é para a juventude brasileira. O legado é para sempre. Abrimos as portas para a juventude de uma opção de futuro. Um grande campo de trabalho. As pessoas que amam esporte não precisam ser apenas atletas, podem ser treinadores, preparadores físicos, médicos, profissionais de marketing.

A Olimpíada abriu isso para o Brasil, um país de 200 milhões de habitantes. Acho que todos podem fazer isso.

Esse efeito já chegou. A crise não está impedido isso. A crise atrapalha em todo os setores. A indústria do esporte é a que mais cresce no mundo e vai crescer no Brasil de uma maneira muito grande em diversos ramos de atividade. Se pesquisar nas escolas, você vai ver esse impacto nesses jovens. Foi isso que essa Olimpíada representou para o Rio e para o país.

O Brasil ganhou o direito de fazer os Jogos em 2009. O que o senhor faria diferente?
Tenho a consciência absolutamente tranquila. Faria tudo igual e tudo de novo.

Qual foi o momento mais emocionante da Olimpíada?
É natural que para quem abre e fecha os Jogos esses sejam os grandes momentos pessoais [ele discursou nas duas solenidades no Maracanã]. Mas também foram grandes momentos as medalhas conquistadas pelos brasileiros. É claro que a medalha de ouro do futebol foi um orgulho muito grande. Foi numa festa no Maracanã diante da Alemanha depois do que aconteceu na Copa do Mundo. Mas todas as medalhas nos encheram de orgulho. Foram momentos de muita emoção.

Qual o legado que os Jogos deixaram para a cidade?
Tem dois tipos de legado. Um é o da cidade. Tem três cidades que são exemplos de legado na história olímpica. Estamos falando de quase 125 anos. São Tóquio [em 1964], que fez o evento após a guerra que perdeu, Barcelona [em 1992], que fez uma transformação, e o outro é o Rio.

Por isso, digo que o Rio é a porta aberta para muitas cidades que querem se transformar com um grande evento. Essas três cidades escreveram as suas histórias em épocas diferentes, mas o Rio deixa esse legado para frente. As linhas de metrôs, os BRTs [corredor de ônibus], vias expressas, como a transolímpica, hotéis. Esses são legados que ficam para a população.

O próprio COI tem orgulho de dizer que a Olimpíada trouxe para a população do Rio uma marcar que levaria décadas, se é que essas obras seriam feitas.

Quanto ao legado esportivo, divido em legado [dos governos] federal, estadual e municipal e do COB e das federações.

O legado foi apresentado antes dos Jogos. Temos mais de 200 atletas treinando em 12 modalidades no Parque Aquático Maria Lenk. Temos lá um laboratório olímpico que é raro no mundo.

O que podemos fazer no legado deles [nas arenas administradas pelos governos] é dar nossa capacidade e competência técnica para desenvolver e utilizar aqueles equipamentos. Dinheiro para a manutenção não temos. Por isso, não podemos administrar isso. Mas os governos administrando aqueles equipamentos, com o nosso conhecimento técnico, pouco a pouco vamos crescendo.

É bom lembrar que a grande maioria dos centros de treinamento no mundo pertence aos governos. Os comitês não têm dinheiro para pagar. É importante ter em mente sempre o legado.

O Comitê tem uma dívida auditada de cerca de R$ 130 milhões. Isso não seria uma falha? Como pagar essa dívida?
São duas coisas. O custo da organização foi exatamente igual ao que foi planejado em 2008 na nossa candidatura [US$ 2,8 bilhões]. O que mostra que foi um trabalho absolutamente correto.

O que temos que pagar, vamos pagar. Estamos fazendo um esforço muito grande. Já pagamos muito. Vamos cumprir, com toda a luta e dificuldade. Temos que reconhecer o momento financeiro que o país passou e passa. Mesmo assim, não deixamos de entregar os Jogos de uma maneira espetacular. Poderíamos até ter diminuído a entrega, mas quisemos honrar e ter o orgulho do que fizemos.

Vamos honrar [as dívidas] e estamos negociando com parceiros e credores.

O comitê terá que ser encerrado em 2023...
Isso é o que consta na nossa abertura. É mais ou menos padrão para entidades com essa natureza. Quero terminar o mais rápido possível. Se desse, eu terminava neste ano.

O COI se recusou enviar uma ajuda financeira para a Rio-2016 fechar as contas. Como viu esse gesto?
Espera aí. O COI nos ajudou muito. Somos gratos pelo reconhecimento e pela ajuda. O que aconteceu agora é que o comitê executivo pediu que fizéssemos um novo plano mais preciso. É o que estamos fazendo. Vamos levar ao COI [nos próximos meses] e eles vão analisar uma possível ajuda.

O comitê sempre disse que não usaria verba pública, mas precisou e ainda não fechou as contas...
Veja bem. Ter feito os Jogos com recursos privados é uma vitória olímpica, uma medalha de ouro. Ninguém fez até agora. É um reconhecimento para ser enaltecido. Se tivermos ajuda, vamos explicar como será. Podemos receber patrocínios a qualquer momento.

A Justiça da França está investigando a compra de votos na disputa pelos Jogos vencida pelo Rio em 2009 [um dos maiores fornecedores de serviço do governo de Sérgio Cabral, o empresário Arthur Soares Filho teria pago cerca de US$ 1,5 milhão ao filho de um ex-integrante do COI, o senegalês Lamine Diack]. O senhor tem certeza que não houve pagamento de propina?
Quem ganhou por 66 a 32 votos [de Madri na final], não pode ter tido compra de votos. Nós largamos muito bem [a disputa teve três turnos] e fomos em frente. Entregamos Jogos espetaculares. Não tem que achar que tenha ocorrido alguma coisa.

Conhece esse empresário?
Não.

Em março, o COI afastou Frank Fredericks, que participou da eleição do Rio. A empresa dele é suspeita de receber cerca de US$ 300 mil da companhia de Diack no dia da escolha. O que o sr. sabe sobre isso?
Não sei, não tenho ideia e não posso falar.

O ex-governador do Rio Sérgio Cabral, um dos principais apoiadores dos Jogos, está preso. Quase todos os políticos envolvidos na escolha da sede são investigados pela Lava Jato. O senhor recebeu de algum deles uma proposta não republicana?
Graças a Deus, não. Nunca chegaram perto e nunca falaram nada comigo.

Como carioca, como o senhor vê essa situação calamitosa do Rio. A Olimpíada consumiu muito dinheiro público. O senhor se sente em parte responsável por isso?
Pelo contrário. O dinheiro público investido foi usado em benefício da cidade. O legado está mostrando isso. Sobre a situação [do Rio], se o próprio governador [Luiz Fernando Pezão] reconhece essa dificuldade, todos reconhecem que não é o que queremos. Lamentamos e esperamos que isso seja corrigido e melhorado. O que a Olimpíada trouxe para o Rio na história das futuras administrações... Nenhuma vai ser tão importante quanto essa em função dos benefícios entregues à população num espaço de tempo curto.

Como o senhor se sente após trabalhar com essas pessoas, muitas presas e condenadas por desvios milionários?
Eu não quero entrar no mérito, ainda mais como advogado. Não quero comentar sobre um assunto que está no âmbito judicial.

O senhor apoia algum candidato para presidente do país?
[Risos] Essa não respondo nem no dia. Não tenho nem candidato. A grande vantagem do esporte é não pertencer a partidos. Por isso, posso lidar com todos.

Qual o impacto da crise no esporte de alto rendimento? A crise vai afetar a preparação da equipe brasileira para os Jogos de Tóquio?
A queda é muito grande. Afeta e vai afetar equipes e atletas. Não tenho dúvida disso. É o que está acontecendo no Brasil inteiro, em outros setores também. O que sinto é uma reação dos atletas em se empenharam. As federações estão revisando programas, estratégias de planejamento. Vamos ter que diminuir também a participação em competições e grandes eventos. É um momento que temos que enfrentar.

Somente a Grã-Bretanha subiu [após fazer os Jogos em casa]. Até a China caiu [de desempenho] após os Jogos de Pequim. Espero que o Brasil melhore [economicamente] para poder ter a volta dos recursos. A crise afeta até o apostador [parte da verba que financia o COB é oriunda da Lei Piva, que destina uma porcentagem da arrecadação das loterias federais para a entidade]. Os recursos da lei também diminuíram.

O COB trabalhou sempre com metas para os Jogos do Rio. A entidade prometeu colocar o Brasil entre os dez primeiros no quadro de medalhas no Rio. Para isso, previa conquistar 23 medalhas. A delegação terminou na 12º colocação, com 19 medalhas, duas a mais do que em Londres-2012. O que faltou?
Foi ótima a sua pergunta. Tenho que voltar ao tempo do vôlei. Nunca fiz metas. Quem estabeleceu foi o diretor de Esporte [Marcus Vinícius Freire, demitido logo após os Jogos]. Eu fui contra. A meta é uma das coisas mais difíceis de se prever. A "Sport Illustrated" [revista norte-americana] sempre fazia isso antes dos Jogos e errava.

Então, admite que falhou?
Não. Muitas das vezes, o resultado do quadriênio dá uma expectativa maior do que deve ser dada. Hoje, todos os treinadores assistem a competições pela televisão, fazem "scouts". O esporte está mapeado. Vai decidir no milésimo de segundo, numa cesta final. O detalhe decide cada vez mais.

O senhor acha que o Brasil não vai ter em Tóquio o mesmo resultado?
Não estou falando em número de medalhas e nem se vai ser menos ou mais. Estou dizendo que o trabalho do COB, das confederações, dos técnicos e dos atletas têm sido enorme. Todos querem dar o melhor para dar um excelente resultado em Tóquio.

Após Tóquio-2020, o senhor vai se aposentar?
Vou falar nisso no momento adequado. Não estou nem pensando nisso.

RAIO-X

Nascimento
17.mar.1942 (75 anos), no Rio

Como atleta
> Ex-jogador de vôlei
> Disputou os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964

Como dirigente
> Presidente do comitê organizador dos Jogos Olímpicos do Rio-2016
> Presidente do COB (Comitê Olímpico do Brasil) desde 1995


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