Folha de S. Paulo


Silvana Lima, 32

Surfista cearense usou carro ganho em torneio para dar casa para mãe

Pantin Classic Galicia Pro
Silvana Lima após disputar bateria na Espanha
Silvana Lima após disputar bateria na Espanha

Resumo Duas vezes vice-campeã mundial de surfe, a cearense Silvana Lima, 32, voltou ao circuito em 2017, após temporada na divisão de acesso, com duas metas: ganhar título mundial e se classificar para a Olimpíada de Tóquio-2020. Após participar da luta pela equiparação de premiações entre homens e mulheres no Circuito Mundial, ela acredita que suas vitórias podem ajudar a desenvolver o surfe feminino no Brasil.

Nasci em Paracuru (CE) e passei a infância morando em uma barraca de praia, que é uma espécie de cabana que tem bastante no Nordeste, com a minha mãe e quatro irmãos. Ninguém tinha quarto e nem mesmo cama, dormíamos todos em redes.

Meu pai e minha mãe se separaram quando eu ainda era pequena. Eu ajudava ela a vender PF [prato feito], cerveja, refrigerante e outras coisas para dar o dinheiro da nossa sobrevivência.

Mundial de surfe
Etapa do Rio

Nessa época, o que eu gostava mesmo de fazer nos finais de semana e feriados era pastorear carros. Chegavam os turistas e eu falava: "Posso dar uma olhadinha, moço?" Paracuru é muito tranquila, não tem assalto nem nada, mas era uma maneira de ganhar a moedinha que depois eu ia usar para comer alguma coisa na escola.

Comecei a surfar por influência dos meus irmãos. Começou como brincadeira. Sou a caçula da família, eles já surfavam e eu comecei a achar interessante, até porque não tinha mais nada para fazer na beira da praia.

Peguei as primeiras ondas com um pedaço qualquer de madeira, que era como se fosse o que a galera chama de "sonrisal" [skimboard, uma prancha pequena e arredondada], mas de madeira maciça mesmo, sem resina, rústica.

Saí de casa em 2002, quando tinha 17 anos, para tentar a carreira como surfista.

No início, a maior dificuldade foi a falta de patrocínio. Mesmo já disputando competições profissionais, eu me inscrevia em campeonatos amadores para conseguir mais dinheiro. Comecei a ganhar e fui avançando na carreira ao investir as premiações em mim mesma.

Logo no primeiro ano, fui para São Paulo para disputar duas etapas que davam como prêmio um carro modelo Celta. Foi com a venda desse carro que eu consegui tirar minha mãe da barraca e colocá-la em uma casa de verdade.

Adriano Vizoni/Folhapress
A surfista brasileira Silvana Lima disputa bateria do Mundial de surfe em Saquarema (RJ)
A surfista brasileira Silvana Lima disputa bateria do Mundial de surfe em Saquarema (RJ)

Nossa família é pequena e não tem condições financeiras, então eu sou a coluna. Minha mãe foi uma preocupação constante por um tempo porque ela teve um problema de alcoolismo. Hoje está bem melhor. Ainda bem que se recuperou antes que fosse muito tarde [tem 65 anos].

O surfe feminino no Brasil está apagado. Às vezes, fico sentida de falarem da "Brazilian Storm" e esquecerem do meu nome, já que eu também faço parte. Entrei no circuito junto do Adriano [Mineirinho] e todos eles me conheciam quando surgiram.

Por outro lado, com meu talento e minha força de vontade eu consegui chegar aqui e se eu não tivesse persistido, o surfe feminino no Brasil poderia ter sumido. A mulherada quer aparecer, algumas marcas estão começando a prestar mais atenção, mas só vai funcionar quando tivermos campeonatos no país.

Já faz um bom tempo que não temos campeonatos femininos de grande porte no Brasil. O Wiggolly [Dantas, que disputa o Mundial] faz uma etapa em Ubatuba, mas é pouco para falar de um ano inteiro. Eu me coloco no lugar delas: que perspectivas elas têm? Vão ficar treinando o ano inteiro e não vão competir? Como elas vão saber se estão bem, aparecerem para marcas, saírem em revistas?

Existem campeonatos fora do Brasil, mas sem um patrocinador que ajude a viajar é a mesma coisa que nada.

Algumas meninas fazem trabalhos de modelo. Não é a minha praia. Sou profissional de surfe, treino todos os dias, foco nos eventos e tenho como objetivo competir.

Agora eu estou bem em termos de patrocínio, tenho marcas que me ajudam bastante. Estou desde 2012 sem patrocinador principal, mas os que tenho estão me permitindo continuar a carreira.

No passado, o Circuito Mundial de Surfe tinha uma diferença absurda entre as premiações de homens e mulheres. Era algo como quatro vezes mais para os homens.

Hoje, eles equilibraram [desde 2014, a Liga Mundial de Surfe paga em média valores iguais para homens e mulheres], e muita gente brigou por isso, inclusive eu.

[Em 2015, último ano em que disputou o circuito, Silvana terminou na 14ª colocação e conseguiu US$ 99.250 (cerca de R$ 308 mil em valores atuais) em premiações].

Existe muito machismo no esporte, infelizmente. Não só no surfe. Já está à vista, todos sabem que existe. Uma coisa importante que acredito ter feito para mostrar a força do surfe feminino brasileiro foi quando dei um aéreo [manobra em que a surfista pega impulso, salta na onda e volta] em Gold Coast, em 2015.

Saiu em jornal, o William Bonner falou no Jornal Nacional do meu aéreo, explicando o que era. Foi marcante, porque diziam que mulher não sabia dar aéreo, que não tinha força para isso.

Tenho dois grandes desejos no surfe: ser campeã mundial e participar da Olimpíada de Tóquio. Estou trabalhando para isso. Tenho muita fé e não desisti de levar o Mundial [ela foi vice em 2008 e 2009]. Temos três anos até os Jogos e estarei lá. Se eu ganhar, o surfe feminino pode ter a mudança que precisa.

Surfe


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