Folha de S. Paulo


Técnico de Isaquias, Jesus Morlán luta contra câncer enquanto mira 2020

O currículo fantasia uma realidade da qual Jesus Morlán, 50, nunca pôde desfrutar.

As credenciais estampam oito medalhas em Olimpíadas. Também apontam que, em Jogos, jamais obteve resultado abaixo do bronze. Por fim, mostram que ele mudou a literatura da modalidade, que dizia ser impossível ter sucesso em prova longa, de 1.000 m, e ser competitivo em outra veloz, de 200 m.

São distinções lindas, marcantes, únicas. Mas Jesus não pode apalpá-las.

"Pode abrir todas as gavetas de minha casa que você não achará nem uma medalha. Só a de um Campeonato Espanhol de rafting, que era o meu esporte", conta.

A explicação para não transformar em matéria seus mais caros triunfos está no fato de que, ao longo de sua vida, Jesus dotou-se sobretudo de uma capacidade inesgotável de aprimorar os outros.

Tornou-se, em razão de sua inflexível exigência e de sua paixão por números, marcas e façanhas, o mais respeitado técnico de canoagem velocidade do mundo.

Em sua Espanha natal, lapidou o canoísta David Cal rumo a cinco pódios e à condição de maior medalhista olímpico da história do país.

No Brasil, em três anos talhou um baiano enérgico e amalucado e o converteu no único atleta nacional com três láureas em uma só Olimpíada. Jesus fez com que Isaquias Queiroz ganhasse três medalhas na Rio-2016 -uma delas ao lado de Erlon Souza.

Essa dedicação para esculpir jovens nunca foi tão importante para Jesus quanto neste momento. Porque, mais que medalhas, mergulhar em sua paixão pode ser a diferença entre a vida e a morte.

No início de novembro, um dia depois de se reunir com integrantes da direção esportiva do COB (Comitê Olímpico do Brasil) para alinhar estratégias para os Jogos de Tóquio, o espanhol se sentiu mal na casa da seleção brasileira de canoagem em Lagoa Santa, cidade mineira que serve de base para o time.

Por pensar se tratar de um mal qualquer, recolheu-se em seu quarto repleto de tonturas e dores de cabeça. Ignorou chamados, descartou a comida e pediu privacidade, para a surpresa de atletas e técnicos, que conheciam bem seu jeito ativo e verborrágico.

Poucas horas depois, foi encontrado desacordado.

Uma sequência de telefonemas e movimentações -que envolveu até o técnico da seleção masculina de vôlei, Bernardinho, de quem ele é amigo- se seguiu até que ele fosse levado para exames em hospital de Belo Horizonte, onde foi diagnosticado um tumor na base do cérebro.

O COB e a Confederação Brasileira de Canoagem, que o contrataram, optaram por transferi-lo em UTI móvel para o Rio onde, no dia 8 de novembro, Jesus foi submetido a cirurgia para extração.

O neurocirurgião Paulo Niemeyer removeu aproximadamente seis centímetros de massa da cabeça de Jesus. Para retirá-la, foi necessário um corte longo -a grosso modo, da testa à traseira da cabeça.

A incisão, 41 dias depois, está praticamente invisível, coberta pelos cabelos ralos e grisalhos. Sua confiança também parece restabelecida.

"Estou muito bem. Vinte dias atrás, eu era outra coisa. Em dez minutos, enjoava. Falar com alguém era um esforço intelectual tão grande que minha cabeça parecia explodir. Agora, posso dar uma palestra de quatro horas, ao estilo Fidel Castro", assegura.

A empolgação de Jesus está mais baseada no voluntarismo de um técnico vencedor, que não aceita reveses, do que na ciência dos fatos.

O espanhol lida com um câncer agressivo, que lhe toma a maior parte da atenção.

Pela manhã, faz quimioterapia. À tarde, radioterapia, que apelidou de "mini-soneca". Encerra seu cotidiano de tratamento com fisioterapia.

Ele afirma que não teve reações até agora.

Porém, a fase mais aguda da quimio e da radioterapia ainda está para começar. Outra cirurgia nos próximos meses também é aventada.

O alento é que o tratamento deve acabar em 19 de janeiro, e com ele a probabilidade de obter liberação médica para voltar a Lagoa Santa.

O retorno às Minas Gerais e a preparação da equipe para os Jogos de Tóquio se tornaram seu combustível. Ou melhor, o jeito que encontrou de deixar a frágil condição de saúde em segundo plano.

"Eu tenho que chegar a Tóquio porque preciso acompanhar meu time. E também tenho que acompanhar minha filha, Sofia, de cinco anos. Tenho que estar neste mundo para acompanhá-la. O meu plano A não vai mudar", diz.

O espanhol diz que "deu brilho", mas não "arrumou" a vida de Isaquias e Erlon.

Para isso, ele crê que serão necessárias medalhas no Japão. Jesus já vislumbra duas: uma de Isaquias no C1 1.000 m e outra da dupla, também na distância de 1.000 m.

Na ausência do técnico, os medalhistas olímpicos têm treinado em Lagoa Santa e mantido contato com ele.

Jesus envia as orientações para seus auxiliares, que aplicam os programas ao time.

"Espero que esses meninos se arrependam muito que eu me recupere rápido, porque chuparão chicote até Tóquio. Nós vamos atrás destas duas medalhas no Japão", afirma.

Jesus é um aficionado por dados e planilhas.

Anota nelas que, em média, cada um dos atletas que orienta percorre 16 mil quilômetros em treinamentos em um ciclo olímpico. São 3.000 horas de prática dentro da água, além de musculação e afins.

De acordo com seus preceitos, só aguenta isso quem tem um objetivo, e ele faz questão de dizer que os brasileiros captaram o que isso significa.

Ele prevê que Isaquias, 22 anos e três medalhas olímpicas, tem os predicados para ser o maior medalhista brasileiro da história -condição que hoje pertence aos velejadores Torben Grael e Robert Scheidt (cinco cada um).

Jesus reconhece que, para conquistar títulos desde que chegou ao Brasil, em 2013, abusou da exigência com Isaquias, principalmente.

A ponto de xingá-lo -e ouvir xingamentos de volta. A ponto de humilhá-lo e, a seguir, debochar do muxoxo do atleta. A ponto de dizer que a alma deles lhe pertencia.

"Quando se mora 24 horas por dia com esses safados, acaba-se criando uma família", rende-se. "Só no Brasil descobri o que era um beijo de atleta. Não conhecia. Os meus atletas ganharam as medalhas no Rio e deram um beijo no papai. Depois de maltratá-los por três anos, ganhei beijo de meus meninos."

É em meio a uma porção de beijos, números e sonhos que Jesus, acostumado a dizer que seres humanos são "máquinas de resolver problemas", tenta superar o maior desafio de sua existência.

FAMÍLIA

Ao saber do tumor do marido, Tania Ospina, 34, e a filha, Sofia, 5, deixaram Cartago, cidade próxima de Cali, na Colômbia, onde moram e vieram ao Rio.

Para ajudar na recuperação de Jesus, Tania também trouxe sua mãe, Melva.

"Melva está me alimentando tão bem que acho que me odeia. Ela quer que eu viva mais 50 anos. Não quero ser eterno. Me chamo Jesus, não Matusalém."

Jesus está impedido de comer carboidrato, açúcar e qualquer tipo de farinha.

"A parte mais dura do tratamento não são os remédios, mas, sim, ver a minha filha comendo um pão francês", comenta.

Melva tem preparado sempre uma proteína e brócolis, tomate ou couve-flor. "Que bom, pareço um coelho", resigna-se Jesus.

Desde a cirurgia, perdeu quatro quilos. E ganhou tempo ao lado de Sofia.

Jesus vive sozinho no Brasil desde abril de 2013. Foi sua opção para se dedicar mais aos atletas, primeiro em São Paulo, depois em Lagoa Santa.

Tania e Sofia ficaram na Colômbia, para onde o treinador viajava em média três vezes por ano. Depois dos Jogos do Rio, o plano dele previa mais de três meses de férias e só voltar ao Brasil em janeiro, para "trocar a vida de ausências por presenças". O tumor mudou tudo.

Jesus refuta com veemência a insinuação de que teria renunciado à família para dar medalhas ao Brasil. Mas concorda que, agora, o apoio dela tem sido seu maior trunfo.

"Eu fiquei doente. É só me recuperar. Que motivo tenho? Um é Sofia, outro é Tóquio e outro é meu time, meus meninos."

Que esporte é esse? - Olimpíada - Folha de S.Paulo


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