Folha de S. Paulo


Rafaela Silva dividiu prêmio dos Jogos Olímpicos e teme fim de benefício

Rafaela Silva

Rafaela Silva ostenta nove tatuagens, espalhadas principalmente por seus braços.

Uma delas, feita por ocasião dos Jogos de Londres, em 2012, decreta: "só Deus sabe o quanto eu sofri e o que eu fiz para chegar até aqui".

Outra, marcada com tinta no contorno do antebraço direito, diz que "o medo de perder tira a vontade de ganhar".

Sofrimento, medo, derrota e vitória são palavras que resumem sua trajetória. Mas, passado seu momento de glória, ela prevê outras dificuldades no futuro próximo.

A judoca que protagonizou o maior conto de fadas dos Jogos do Rio com o ouro na categoria leve (até 57 kg) está cética quanto ao futuro do esporte olímpico brasileiro.

A façanha lhe rendeu um prêmio em novembro, no Qatar, de desempenho mais inspirador do megaevento.

Suas principais críticas recaem na iminente fuga de investimento de estatais e patrocinadores após o evento.

"Não melhorou nada em relação a patrocínio. Piorou. Nós tínhamos um apoio do governo que era o Bolsa Pódio, e agora não sabemos se a receberemos mais. Faz falta a todos, inclusive aos medalhistas. Para quem não foi vai fazer mais falta ainda", afirma Rafaela à Folha no polo Cidade de Deus do Instituto Reação, onde treina.

O benefício pago pelo governo federal varia entre R$ 5 mil e R$ 15 mil e contempla atletas que estão entre os 20 melhores do mundo –olímpicos e paraolímpicos.

Rafaela receberá R$ 8 mil mensais até fevereiro. Para alguns atletas, o incentivo cessou após o fim dos Jogos e não houve nenhum edital para a renovação do benefícios desde então.

O Ministério do Esporte diz que, como se trata de lei, não será encerrado e continuará até Tóquio-2020. A pasta afirma estar prestes a lançar um novo edital para o ciclo. Desde 2013, foram investidos mais de R$ 60 milhões na bolsa, que beneficiou 322 atletas.

Para Rafaela, depender da verba pública é um risco. Recentemente, estendeu o contrato com seu único patrocinador pessoal, uma empresa de telefonia, mas diz saber que se trata de exceção.

"Justamente pelo fato de que o tempo não vai parar para esperar o Bolsa Pódio voltar é que me preocupa. A gente treina diariamente, precisa de quimonos que custam R$ 1.600. Eles rasgam. E as contas continuam a cair todos os meses", comenta. "Essa parte financeira está preocupando todos os atletas."

Rafaela liderou um movimento intramuros na seleção de judô durante os Jogos Olímpicos, em agosto.

Com direito a gorda premiação da Confederação Brasileira de Judô pelo ouro, reuniu Mayra Aguiar e Rafael Silva, medalhistas de bronze, e sugeriu que os valores a que tinham direito fossem somados e divididos entre todos.

Os dirigentes aceitaram o rateio. "Se eu ficasse com o valor pela medalha de ouro, ganharia dez vezes mais do que realmente recebi", diz.

Ajudou, por exemplo, Mariana Silva, quinta colocada no meio-médio (até 63 kg) no Rio, que não tem patrocínio.

A judoca diz tirar um complemento de renda de palestras que tem feito pelo Brasil, após a conquista da medalha.

"Com isso, consigo ajudar minha família", diz ela.

Nas apresentações, Rafaela não exibe gráficos sofisticados nem domina os ouvintes com teatralidade. "É mais para contar um pouco da minha história de vida."

"Na maioria fui aplaudida de pé. Vi pessoas secando lágrimas. No fim, nem querem autógrafo, mas um abraço e dizer para não desistir. Elas veem minha medalha, mas não sabem o que eu passei."

Criada na Cidade de Deus, uma das maiores favelas do Rio, achou refúgio no judô.

"Conheci a Rafaela com 8 anos e vi que ela tinha uma força natural da comunidade. Disse: 'um dia vou botar você na seleção'. Ela nem sabia o que era isso", conta Geraldo Bernardes, seu técnico.

O treinador diz que o ímpeto dela o obrigou, no passado, a ir a colégio para demover a direção de expulsá-la.

"Uma vez a Rafaela jogou gesso na cabeça de um moleque. E agora tem escola no nome dela. O que não é a vida, né?", brinca, ao se referir a instituição na zona oeste do Rio que agora a homenageia.

Ela só voltará a competir em fevereiro, no Grand Slam de Paris, com um sonho.

"A sensação de subir ao topo olímpico foi inesquecível. Gostaria de sentir de novo."


Endereço da página:

Links no texto: