Folha de S. Paulo


Uma história, dois clubes, divididos pela guerra no Kosovo

James Hill - 28.set.2016/The New York Times
 KF Trepca prepare for a home soccer match at the Olympic Stadium Adem Jashari in Mitrovica, Kosovo, Sept. 28, 2016. The ethnic divisions that running through the once-vibrant Yugoslavian city of Mitrovica are rarely clearer than at this stadium, whose namesake is considered a hero of liberation by Kosovar Albanians, and a terrorist by Serbs. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT50
Jogadores do KF Trepca se preparam para partida no estádio Olympic Stadium Adem Jashari

Mesmo em meio às bandeiras, às camisas patrocinadas e a todos os demais acessórios do futebol moderno, Bardhec Seferi continua capaz de fechar os olhos e ver a grama alta do passado.

Seferi estava no campo de futebol do Estádio Olímpico Adem Jashari, em Mitrovica, uma cidade no norte de Kosovo. Alto, e hoje já passado dos 50 anos, ele havia acabado de assistir a uma derrota do Trepca - time para o qual ele entrou na infância e depois defendeu profissionalmente como zagueiro — diante do Ferokineli, o atual campeão de Kosovo.

Seferi parecia deprimido. A partida foi disputada em uma dia de semana à tarde, e a torcida era ínfima: apenas algumas centenas de pessoas. Pior, a derrota por 1 a 0 havia derrubado a equipe para uma das últimas posições da tabela do campeonato. Para qualquer pessoa associada a um clube orgulhoso, que nos anos 70 se tornou o primeiro de Kosovo a jogar na primeira divisão da então Iugoslávia, era uma pílula amarga a engolir.

Nos anos 70, até 20 mil torcedores teriam comparecido para ver em campo um time no qual sérvios, bósnios, croatas e albaneses de Kosovo jogavam juntos. Mas era um tempo diferente, e um país diferente, antes das guerras que dividiram tanto a cidade de Seferi quanto seu time.

James Hill - 28.set.2016/The New York Times
 Bardhec Seferi, who played for Trepca in their glory days in the Yugoslavian soccer league, at the Olympic Stadium in Mitrovica, Kosovo, Sept. 28, 2016. Like much else in this ethnically-divided city, there are now two Trepcas: one Kosovar Serb, one Kosovar Albanian. Seferi still hopes for a reconciliation. “There is an open invitation for them,” he said. “They can join whenever they want.” (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT52
Bardhec Seferi, que defendeu o Trepca na épocas de glória da antiga Iuguslávia

Hoje, existem dois Trepcas em Mitrovica: um formado por albaneses de Kosovo, no sul, jogando sob o nome de KF Trepca, e um formado por sérvios de Kosovo, no norte, jogando como FK Trepca. Os dois usam virtualmente o mesmo escudo, e os dois usam verde e preto como as cores de seu uniforme. Ambos compartilham orgulhosamente do histórico criado com a fundação do Trepca original, em 1932. E embora agora joguem campeonatos nacionais diferentes, os dois afirmam ser o verdadeiro herdeiro do passado do clube.

Depois que a guerra de Kosovo redesenhou o mapa étnico da cidade, em 1998, o FK Trepca passou a frequentar as últimas posição na tabela da liga sérvia, depois de ser despejado daquele que encara como seu estádio ancestral. O KF Trepca foi criado como um protesto pela independência antes de ganhar vaga na federação de futebol de Kosovo, apenas recentemente reconhecida, e joga no estádio que afirma ser parte de sua herança espiritual.

"Quando voltei para cá, depois da guerra, a grama tinha crescido tanto que se você caminhasse pelo gramado, não enxergava o próprio umbigo", disse Seferi sobre o campo do KF Trepca, fazendo um movimento lateral com as mãos, como se estivesse ceifando grama. "Não se via muita coisa. Por isso, os jogadores tiveram que aparar o gramado antes de podermos voltar a usá-lo. Mas tudo bem: estávamos em casa".

Mitrovica no passado foi uma das mais ricas e vibrantes cidades da Iugoslávia. Uma cidade de minaretes e igrejas ortodoxas, sua população misturava albaneses e sérvios, e os empregos eram abundantes, graças às minas de Trepca, ali perto, que deram seu nome ao time de futebol da cidade. Até 70% do produto bruto de Kosovo vinha das minas, que produziam zinco, prata, ouro e chumbo em imensas quantidades, ano após ano.

A vasta riqueza da cidade ajudou a conduzir seu time de futebol à primeira divisão da Iugoslávia, em 1977, e à sua primeira final de campeonato um ano mais tarde.

"Foi um dos melhores campeonatos de todos os tempos", recorda Seferi, que jogou nos anos 80 e 90. Os jogadores, quer sérvios, quer bósnios, se tratavam como irmãos, ele diz. Seferi mostra com orgulho uma foto que ele tem guardada no celular: nela, ele aparece jovem, com cabelos negros e encaracolados, marcando um gol de cabeça contra o Estrela Vermelha de Gjilan, diante de uma imensa torcida.

"Nós nos dávamos muito bem", ele diz, sobre o time multiétnico que defendia.

Mas em 1989, o Trepca havia caído à terceira divisão do futebol iugoslavo. E não demoraria para que o time, como o país, terminasse dividido.

James Hill - 2.out.2016/The New York Times
 Players with FK Trepca, a team from Mitrovica, Kosovo, listen to a pre-game talk before their soccer match in Mrcajevci, Serbia, Oct. 2, 2016. The team sang old Yugoslav songs on the bus ride across the border to compete in the Serbian fourth-tier soccer league; both FK Trepca and KF Trepca, a Kosovar Albanian team, claim the decades of history that came before war tore apart the region. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT55
Jogadores do FK Trepca escutam a preleção do treinador antes de partida na Sérvia

DIVISÃO E SUBTRAÇÃO

Depois da morte do líder comunista Josip Tito, em 1980, a Iugoslávia começou a se desmantelar. Pelo final dos anos 80, a ascensão de um novo líder iugoslavo, o sérvio Slobodan Milosevic, levou a uma repressão da autonomia de Kosovo.

Protestos irromperam em toda a província, colocando a maioria étnica albanesa em conflito aberto com o Estado. Mais de mil dos mineiros de Trepca realizaram uma greve subterrânea que durou oito dias e oito noites. Em 1991, os jogadores kosovares do Trepca haviam decidido deixar o time.

"Era parte da política, do lado sérvio", disse Seferi. "Eles diziam que se quiséssemos continuar jogando com eles, teríamos de aceitar suas leis, seu governo. Nós não aceitamos".

Em lugar disso, Kosovo formou uma liga de futebol paralela, ilegal, realizando partidas em campos improvisados e marcadas com pouca antecedência.

"A polícia parava os jogos no meio e prendia todo mundo, às vezes detendo o pessoal por três dias e às vezes libertando todo mundo na hora", disse Ajet Shosholli, o presidente do KF Trepca.

James Hill - 2.out.2016/The New York Times
 Players with FK Trepca, a team from Mitrovica, Kosovo, warm up before a soccer match in Mrcajevci, Serbia, Oct. 2, 2016. The team sang old Yugoslav songs on the bus ride across the border to compete in the Serbian fourth-tier soccer league; both FK Trepca and KF Trepca, a Kosovar Albanian team, claim the decades of history that came before war tore apart the region. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT47
Jogadores do FK Trepca durante treino

Enquanto o novo time do Trepca batalhava em campos ruins e tomava banho nas águas gélidas dos rios depois de seus jogos, o FK Trepca continuava jogando nas divisões de baixo da liga iugoslava, sem a maioria de seus jogadores albaneses.

"Era uma sensação horrível, vê-los jogar", diz Seferi. "Nós jogávamos em qualquer campinho, nos lesionávamos, terminávamos presos. Éramos pressionados. Mas continuamos jogando".

Depois de oito anos jogando na liga improvisada de Kosovo, os jogadores retornaram à cidade, quando a guerra de Kosovo acabou. O estádio olímpico ficava na metade sul de Mitrovica, que coube aos albaneses. A grama havia crescido descontroladamente e as arquibancadas serviam de lar a dezenas de famílias de refugiados, fugitivos de uma guerra civil sangrenta. Todas as taças e medalhas da equipe, mais de 60 anos de história, haviam desaparecido.

"Não sei se foram queimadas ou roubadas, mas não estão aqui", disse Shosholli. "Toda a nossa história, apagada".

Petar Milosavljevic recorda o último jogo que o Trepca jogou como equipe unida, em 1991. O time venceu por dois a zero, mas a atmosfera havia mudado.

"As pessoas estavam assustadas", ele conta. "A política havia entrado no estádio".

Milosavljevic, 76, secretário do FK Trepca, estava sentado no pequeno escritório do clube, pouco ao norte do rio Ibar, que divide a cidade - albaneses ao sul, sérvios ao norte. Ele estava cercado de fotos do passado da equipe. O nome do Trepca está escrito em cirílico por sobre a porta.

James Hill - 29.set.2016/The New York Times
 Petar Milosavljevic, the secretary of FK Trepca, with heirlooms of the soccer club’s storied past, in Mitrovica, Kosovo, Sept. 29, 2016. None of the trophies is from before 1991, when most of the Albanian players left to form their own team, KF Trepca; the two clubs carry on a bitter dispute over the past as both have faded away. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT54
Petar Milosavljevic, o secretário do FK Trepca,

O escritório do FK Trepca tem uma coleção das taças e medalhas do clube, mas nenhuma anterior a 1991. Milosavljevic presumia que os velhos troféus continuassem no estádio original, ou possivelmente tenham sido roubados durante a guerra. Quando a guerra chegou a Mitrovica, em 1998, o FK Trepca, como os albaneses antes dele, teve de deixar o estádio, e jamais voltou a jogar lá.

O FK Trepca agora disputa a quarta divisão do futebol profissional sérvio, viajando longas distâncias para jogar em cidades da Sérvia, em lugar de enfrentar outros times de Kosovo. O clube divide um pequeno estádio, na aldeia vizinha de Zvecan, e não tem muito dinheiro. Mas, diz Milosavljevic, pelo menos continua vivo.

Da sacada de seu escritório, ele consegue ver o outro Trepca jogando partidas da liga de Kosovo ou treinando, no estádio olímpico.

"Vejo a cada dia os jogadores albaneses jogando lá, e eu não estou lá", ele disse. "É meu lar. Sempre que vejo, fico a ponto de chorar".

ORGULHO E RAIVA

Em uma manhã de domingo, jogadores sérvios e dirigentes do FK Trepca estavam reunidos em uma casa local de apostas, esperando o ônibus que os transportaria a uma nova partida do campeonato. Seria uma jornada de quatro horas rumo ao norte, para jogar contra o FK Orlovac Mrcajevci no coração da Sérvia. A estrada para o norte se estende ao longo do Ibar, e enquanto o ônibus rodava os jovens jogadores cantavam velhas canções iugoslavas, com paradas ocasionais para permitir que um deles, que estava na farra na noite anterior, saísse do ônibus para vomitar.

Os jogadores todos cresceram durante a guerra, e poucos podem imaginar que os dois Trepcas venham um dia a jogar unidos.

"Eles tomaram nosso clube", disse Strahinja Jevtic, zagueiro que está à espera de um visto de trabalho para viajar ao Alasca.

Hoje, Mitrovica não oferece muitos empregos, do lado norte ou do lado sul. A mina está enredada em burocracia e política, e trabalhando a apenas uma fração de seu imenso potencial econômico. Apenas algumas centenas de pessoas trabalham na Trepca hoje, em sua maioria vindas do lado kosovar da fronteira.

James Hill - 2.out.2016/The New York Times
 A Sunday morning service at a church on the Serbian side of Mitrovica, north of the Ibar River in Kosovo, Oct. 2, 2016. The soccer club that once proudly represented Mitrovica in the Yugoslavian soccer league is now two teams — one Kosovar Serb, one Kosovar Albanian — bitterly divided and struggling, much like the rest of the city. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT53
Igreja em Kosovo

"Nós jogávamos juntos", acrescentou Jevtic. "Mas isso nunca mais acontecerá".

O ônibus chegou ao minúsculo estádio, onde encontrou um campo repleto de calombos e uma torcida de 30 espectadores.

O Trepca começou perdendo, por dois a zero. No intervalo, o time discutiu zangadamente sobre seu desempenho, no vestiário, antes de voltar a campo para lutar pelo empate. O Trepca marcou um gol e reduziu sua desvantagem, e perdeu o gol de empate por pouco, até que o Orlovac conquistasse o terceiro gol em um contra-ataque. O jogo terminou em três a um.

Os jogadores do Trepca pouco falaram durante a primeira hora da longa viagem de volta a Mitrovica, em plena madrugada.

"Quando ganhamos", comentou o zagueiro Branislav Radovic, rindo, "a atmosfera é muito melhor".

James Hill - 28.set.2016/The New York Times
 A sparse crowd remains after a KF Trepca home match at the Olympic Stadium Adem Jashari in Mitrovica, Kosovo, Sept. 28, 2016. The ethnic divisions that running through the once-vibrant Yugoslavian city of Mitrovica are rarely clearer than at this stadium, whose namesake is considered a hero of liberation by Kosovar Albanians, and a terrorist by Serbs. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT46
Público ao fundo acompanha time KF Trepca após partida

POLÍTICO E PESSOAL

Milosavljevic continua esperançoso de que um dia as relações entre as comunidades sérvia e albanesa melhorem.

Ele diz que no ano passado recebeu uma visita de Fadil Vokkri, presidente da Federação de Futebol de Kosovo. Agora que Kosovo tem uma seleção nacional, a federação vem procurando por jogadores de etnia sérvia dispostos a defender a seleção de Kosovo, onde vivem 150 mil sérvios. Mas é improvável que os encontre.

"Por enquanto, não há condição", disse Milosavljevic. Seferi, que continua em contato com seus velhos colegas de equipe ao norte da fronteira, compartilha dessa esperança de alguma forma de reconciliação entre os dois grupos, e os dois Trepcas.

"As portas estão abertas para eles", disse o ex-jogador. "Podem se unir a nós quando quiserem".

James Hill - 2.out.2016/The New York Times
Two men watch through a wall as FK Trepca, a team from Mitrovica, Kosovo, that crossed the border to play a Serbian fourth-tier soccer match, in Mrcajevci, Serbia, Oct. 2, 2016. Mitrovica was once one of the richest, most vibrant places in Yugoslavia, its mixed-ethnicity soccer club a point of pride. Now Trepka is just one more sore point in a bitterly divided city. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT45
Dois homens acompanham os treinos do FK Trepca

Mas até mesmo o nome do estádio é uma barreira. Depois da guerra, ele foi rebatizado com nome de Adem Jashari, um dos criadores do Exército de Libertação de Kosovo. Os albaneses de Kosovo o veem como herói, mas os sérvios o veem como terrorista.

E há o FK Trepca, localizado em Kosovo mas disputando a liga sérvia. A federação sérvia de futebol afirma que o clube é parte legal de seus quadros; a federação de Kosovo discorda, argumentando que a história, e o futuro, do clube estão em Kosovo.

A federação de Kosovo apelou à Uefa, a organização que comenda o futebol europeu, e à Fifa, que faz o mesmo quanto ao futebol mundial, por uma decisão clara quanto ao caso dos dois Trepcas. Mas a Uefa optou por ficar fora dessa briga, dizendo que cabe às duas federações envolvidas resolver o caso, por mais que demore. No entanto, o tempo não é amigo de Petar Milosavljevic.

"Minha mulher morreu três meses atrás. Não sei quanto tempo mais Deus me dará", ele disse. "Mas eu ficaria muito feliz por nos ver de novo jogando juntos, um dia".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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