Folha de S. Paulo


Argentino Marcelo Mendez desponta no vôlei brasileiro e cobiça seleção

Dentro da sala apertada onde se reúne com sua comissão técnica, os olhos examinam, de maneira cuidadosa, os frutos de um trabalho iniciado há sete temporadas.

Os números estão decorados: em 29 campeonatos jogados, são 27 finais e 23 títulos. O mais recente troféu, de tricampeão mundial de clubes, obtido mês passado, está ali, adicionado há pouco.

Ao falar da façanha, o semblante sério se quebra. Dá lugar a um sorriso genuíno, de alguém que sabe ter o planeta a seus pés –e não é de hoje.

Mas, antes de conquistar o mundo, Marcelo Mendez, 52, ganhou o Brasil. Parece menor, mas no caso dele não é.

Marcelo é argentino, o que por si só já suscitaria alguns narizes torcidos por aqui em razão da histórica rivalidade.

Não bastasse isso, quis fazer sucesso logo no vôlei, um patrimônio tupiniquim.

Mas a trajetória que construiu em 37 anos no esporte parece tê-lo talhado para que atingisse o auge exatamente em território brasileiro.

E alçasse o Cruzeiro ao posto de melhor time do mundo.

O argentino que hoje dá as cartas no vôlei brasileiro cobiça o cargo de técnico da seleção masculina nacional –Bernardinho ainda não decidiu se fica ou sai da equipe.

"Se aparecer uma oportunidade ou Bernardo não quiser continuar, teria muito prazer em trabalhar na seleção", diz o treinador em entrevista à Folha, no dia 27. "Seria um sonho realizado", continua.

O diretor-executivo da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), Ricardo Trade, afirma, porém, que a entidade trabalha para manter Bernardinho à frente da equipe para o ciclo olímpico dos Jogos de Tóquio-2020 e diz que não há plano B para o cargo.

Marcelo assegura que nunca foi procurado pela CBV, apesar do burburinho como sucessor de Bernardinho na equipe nacional.

RIVER PLATE

Misturando castelhano e português, ele não esconde o fanatismo pelo River Plate, clube onde iniciou a carreira de jogador aos 15 anos, em categoria de base, e teve a primeira chance como técnico.

Foram as oportunidades no River que impediram que o vôlei o perdesse duas vezes. Na primeira, flertou com a Engenharia, mais para orgulhar o pai, Rodolfo, do que a si. Em dois anos a paciência acabou, e ele trancou o curso para não mais voltar.

Na segunda, a investida na Administração foi ainda mais breve: durou só um ano.

"Falei para o meu pai que gostava de Educação Física e de vôlei", relembra.

Se seu destino não seguiu o script que Rodolfo traçou, Marcelo ao menos herdou do pai o gosto pelo trabalho.

Em todos os clubes por que passou como jogador, Marcelo pediu para também ser técnico de base. No River articulou projeto de mini-vôlei.

Ele atuou em times da Itália antes de se tornar treinador em definitivo, nos anos 1990. Para acumular experiência, trabalhou "até em colônias de férias e quiosques".

Ajudou a consolidar a associação de treinadores na Argentina, para onde levou para palestrar profissionais do calibre de Zé Roberto Guimarães e do norte-americano Doug Beal, ouro olímpico nos Jogos de Los Angeles-1984.

"Essa é uma diferença entre os técnicos brasileiros e argentinos. Permanentemente estamos nos informando", opina. Na contramão, acha que a maioria dos técnicos brasileiros "fica com o que tem e não busca se atualizar".

Sua biografia não é isenta de erros. O estilo exigente fez com que Marcelo passasse do ponto diversas vezes. Costumava pegar jogadores pelo pescoço por falhas em quadra. Hoje se diz arrependido de tal "atrocidade".

"Expor um jogador na frente de 3.000 pessoas é muito feio. Eu ainda era mais jogador que técnico, mas aprendi".

FILOSOFIA

Marcelo buscou na filosofia de Aristóteles e Platão e na ciência de "O Príncipe" de Maquiavel base para melhor se comunicar com pupilos.

Os anos o levaram para a Espanha, onde dirigiu a seleção nacional, e no final da década passada ao Brasil. Primeiro, dirigiu Montes Claros e depois assumiu o Cruzeiro.

Seus primeiros reforços foram o levantador William, o ponta Filipe e o líbero Serginho, que formam a espinha dorsal do time até hoje.

Começou a enfileirar vitórias e troféus. O grupo se moldou à semelhança do mentor, tão austero quanto atento.

Marcelo, por exemplo, não admite atraso em treino.

Nem injustiças. Certa vez, reprovou um dos seus melhores jogadores por querer que meninos da categoria de base carregassem suas malas.

"Falei para ele 'aqui somos todos iguais. Já não são muitas as outras diferenças, como salário? Você já ganha dez, eles ganham um. Ainda quer aumentar a diferença?'".

É uma evidência de que o jeito rude do começo da carreira deu lugar a um técnico paternal, que dá livros aos jogadores e assistentes técnicos e promove churrascos.

Ele conta que chegou a ajudar atletas no estudo. "Não estou aqui só para dizer 'salte', 'ataque'. Tentamos ser uma família, com problemas que uma família tem", conta.

No primeiro semestre deste ano, Marcelo incentivou um desafio na comissão, cuja meta era perder ao menos 60 kg em conjunto. Perderam 90 kg, e o argentino foi quem mais aliviou a balança (14 kg).

Ele julga que as brincadeiras ajudam a atenuar a rotina estressante de trabalho.

"Com certeza adquiri um pouco de brasilidade. Os jogadores gostam de trabalhar, e eu sou assim. Na Europa é diferente. No Brasil, voltei às minhas origens", conta ele.

Dois dias após receber a Folha, Marcelo comandou o Cruzeiro em outra conquista, a 24ª na história, a Supercopa. O próximo compromisso é a Superliga. O time defende o título e quer o pentacampeonato –estrearia neste sábado (5) contra o Juiz de Fora, onde atua seu filho Juan.

"Não imaginava ter tanto sucesso. Sonhava, mas não que ganharíamos tanto", diz. Os feitos fizeram chegar ofertas para tirá-lo do país, mas ele é irredutível. "Ainda não chegou a proposta que espero".


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