Folha de S. Paulo


Leia a segunda parte do especial de 1998 da Folha sobre João Havelange

Em 1998, quando João Havelange deixou a presidência da Fifa, a Folha publicou um caderno especial sobre o homem que havia comandado o futebol mundial pelos últimos 24 anos.

Chamado de "Era Havalange", o especial teve 12 páginas com histórias pouco conhecidas sobre o cartola mais importante do século 20.

A reportagem também revelou correspondência secreta entre a Fifa e a empresa de marketing IMG, sobre a polêmica ligação da entidade com a ISL (International Sports Leisure), agência que detinha o monopólio dos direitos de publicidade e TV de todas as competições do futebol mundial. O escândalo acabou por ser o responsável por sua queda.

Leia abaixo a segunda parte da íntegra do caderno especial publicado pela Folha em 1998 sobre João Havelange :

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ERA HAVELANGE
Folha conta as histórias secretas do cartola do século
POR MÁRIO MAGALHÃES

Impressionado com o oposicionista, o então presidente da Fifa, o inglês Stanley Rous, desabafa num congresso de jornalistas na Espanha: ''O senhor Havelange está realizando uma campanha política como se estivesse disputando a presidência dos Estados Unidos.''

Ele se enganava, pelo menos em relação a horas de vôo: Havelange parecia buscar a presidência da Organização das Nações Unidas.

Nos três anos que antecederam a eleição, é certo que Havelange percorreu mais de 80 países, em todos os continentes _o número iria variar a cada nova entrevista.

Fundada em 1904, a Fifa tivera até então seis presidentes, todos europeus (1 belga, 2 franceses e 3 ingleses). O mais longevo, Jules Rimet, esteve à frente da entidade por 33 anos (1921-54), marca que Havelange só superaria com mais três mandatos, a partir de 1998.

Por mais que os olhos azuis e o sotaque arranhado não compusessem o ''physique du rôle'' do brasileiro típico, não havia dúvidas de que Havelange representava redistribuição de poder na Fifa.

Num golpe de mestre, se apresenta como o candidato do Terceiro Mundo, o futuro presidente que iria levar o futebol a todos os continentes, especialmente à África e à Ásia, aos países mais pobres.

Como num movimento de países não-alinhados na ONU, passa, na condição de presidente da confederação tricampeã mundial, a falar pelos ''deserdados''.

Com esse discurso, alia conteúdo político à caça ortodoxa de votos. Obtém, assim, o apoio de países comunistas do Leste Europeu.

E a Fifa, diferente da ONU, não tem conselho de segurança ou qualquer órgão em que um país pese mais do que outro. O voto de Honduras valia, e continua valendo, tanto quanto o da Inglaterra.

Dois momentos, um discurso e uma imagem, marcam dramaticamente o 39º Congresso da Fifa, no salão de convenções do Frankfurt Airport Hotel, na Alemanha, em 11 de junho de 1974.

Representantes de mais de dez países árabes e africanos haviam defendido no plenário a volta da China à Fifa. Para isso, seria preciso expulsar Taiwan, condição do governo comunista chinês. Rous e a maioria dos europeus, alinhados com os EUA, eram contra. Alguns delegados não haviam se definido.

Na véspera, disse Havelange à Folha, ele recebera um telegrama do governo brasileiro proibindo-o de abrir a Fifa à China. O ordem foi desrespeitada. No meio do debate, levanta-se e pede a palavra. ''O Brasil, não!'', corta Rous, voltando atrás após protestos.

Em 1 minuto e 40 segundos, num discurso em francês decisivo para a sua vitória na eleição, Havelange defende os chineses, conquistando os votos que faltavam. A proposta de retorno do país vence por 59 a 47, mas não atinge os três quartos de votos necessários.

Com os países que ingressaram naquele congresso, a Fifa passou a ter 146 membros, 139 com direito a voto. Estavam presentes 122.

Na cédula com nomes de Rous e Havelange, o eleitor riscava o nome do preterido, deixando à mostra o escolhido. No primeiro turno, Havelange vence por 62 a 56, menos do que os dois terços exigidos pelo estatuto. No segundo, a apuração demora oito minutos: o brasileiro sai vitorioso por 68 a 52.

Era a vingança para a imagem, registrada numa fotografia: na mesa diretiva dos trabalhos, não havia lugar para Havelange, que, já eleito, teve de se sentar em uma cadeira sem mesa e sem plaqueta com o nome a identificá-lo, como acontecia com os demais.

Eram 15h03 em Frankfurt. Dois dias depois, o Brasil estrearia na Copa da Alemanha, contra a Iugoslávia, num 0 a 0 que sinalizaria 20 anos sem título mundial, período em boa parte de trevas para a seleção. Para Havelange, o melhor da história estava só começando.

E o melhor da história, para Havelange, não seriam gols, jogadas, craques. No ano passado, ele afirmou que o balanço que faz de cada competição não se fundamenta em critérios esportivos, mas na cor final da contabilidade.

Desde 1974, o azul dos balancetes da Fifa tem ficado cada vez mais forte. Naquela Copa, a entidade embolsou US$ 11 milhões, evoluindo, a cada quatro anos, para US$ 18 milhões (Argentina-78), US$ 66 milhões (Espanha-82), US$ 88 milhões (México-86), US$ 102 milhões (Itália-90) e US$ 230 milhões (EUA-94).

Muito? Quase nada, comparando com os contratos de venda dos direitos de marketing e televisão das Copas de 2002 e 2006 para a empresa de marketing ISL.

Pelo Mundial de 2002, na Ásia, a Fifa receberá US$ 1,2 bilhão pela transmissão por TV e marketing. Para o de 2006, cuja sede não foi nem escolhida, US$ 1,6 bilhão.

A ISL pagará, portanto, US$ 2,8 bilhões para a Fifa e ficará com todo o lucro da venda do patrocínio dos dois próximos Mundiais e da cessão dos direitos de transmissão de TV para todo o planeta.

Aventura arriscada? Pois os direitos das duas primeiras Copas do século 21 desencadearam uma disputa entre dois grandes grupos do marketing esportivo, em torno dos quais os dirigentes do futebol se perfilaram, aprofundando a níveis jamais vistos o racha na Fifa.

Descontando o que transferirá para confederações continentais, federações nacionais e organizadores dos torneios, nos próximos dez anos a Fifa embolsará US$ 4 bilhões (TV e marketing das Copas mais patrocínios diversos), o suficiente para comprar à vista, sem um real em moeda podre, a Companhia Vale do Rio Doce, até agora a maior privatização do governo Fernando Henrique Cardoso, e ainda ficar com US$ 900 milhões para investimentos.

Mais do que uma potência com faturamento invejado por muitas multinacionais, a Fifa é a organização central do setor esportivo, aquele que mais cresce na indústria de entretenimento mundial.

Segundo estudo da Fifa, o futebol emprega 400 milhões de pessoas, incluindo os funcionários das indústrias de material esportivo, dos hotéis que hospedam delegações, das empresas aéreas que transportam times, das agências de publicidade que fazem anúncios, das indústrias de papel que produzem a matéria-prima etc.

Esse levantamento estima em US$ 260 bilhões anuais o impacto do futebol na economia mundial. Como referência, embora sejam grandezas diferentes (impacto não é igual a patrimônio), a maior empresa do mundo, o Citigroup, recém-criada com a fusão entre o Citicorp e o grupo Travelers, tem ações que valem US$ 140 bilhões.

Na Inglaterra, as equipes são empresas com ações na Bolsa _se uma cotação despenca, cai o técnico. Por toda a Europa, os clubes estão virando sociedades anônimas, com intenção de gerar lucro.

Na Itália, o futebol já responde por 2% do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos em um ano) e tem enorme possibilidade de crescimento.

O esporte representa 3,5% do PIB dos EUA, um dos países onde o futebol pode agigantar-se como negócio, como Brasil e China.

Uma projeção feita pela equipe de Pelé no Ministério Extraordinário dos Esportes estimou, na economia brasileira, em apenas 0,1% do PIB o impacto do esporte, que teria potencial para, em menos de dez anos, alcançar 4%.

O que se discute hoje não são os métodos de Havelange e seu candidato, Joseph Blatter, qualificados como ditatoriais pela oposição, nem as piadas sobre negros contadas por Lennart Johansson, tido como racista pela situação.

Essas são questões que circundam, ou escondem, o essencial: os negócios bilionários do futebol.

A longevidade de João Havelange na Fifa é explicada em parte pelo sistema de poder na entidade.

Os 146 países filiados no congresso de 1974 devem ser 210 em 1998: 193 com direito a voto, 11 sem (porque não participaram de pelo menos duas competições oficiais nos últimos quatro anos) e os 6 novos propostos pelo Comitê Executivo, incluindo a Palestina.

A ONU tem 185 membros. A diferença é que muitas colônias, no futebol, são independentes. O Reino Unido, um só na ONU, se divide em quatro na Fifa. O voto é unitário na entidade, na qual nenhum país tem peso maior do que outro.

Desde a posse e com apoio da Coca-Cola, Havelange levou ao mundo todo médicos, preparadores físicos, treinadores e jogadores que transmitiam informações técnicas. Mesmo simbólica, era uma forma de distribuição de riqueza no futebol, antes eurocentrista.

Com a transformação da paixão popular num imenso negócio, o apoio de São Vicente e Granadinas, no Caribe, tornou-se tão valioso para as grandes decisões da Fifa quanto o das campeãs mundiais Argentina, Itália e Alemanha.

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ANOS 70
Tri assegura a Taça Jules Rimet
Invicta, com 6 vitórias em 6 jogos, a seleção brasileira conquista a Jules Rimet pela terceira vez, ficando com a posse definitiva da taça. Na final, o Brasil venceu a Itália, bicampeã, por 4 a 1.

Torneio ajuda na campanha
Em 1972, nos festejos dos 150 anos da Independência, a CBD promove um torneio de seleções de quatro continentes. Candidato à presidência da Fifa, em 1974, Havelange contava ter 60 votos.

Vitória vem com 2ª votação
Havelange foi eleito para a presidência da Fifa em 11 de junho de 1974, no 39º Congresso, em Frankfurt. Não atingiu dois terços na primeira votação (62 a 56). Na segunda, venceu por 68 a 52.

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POLÊMICA E BILIONÁRIA, NEGOCIAÇÃO SOBRE COPA DE 2002 DIVIDE A FIFA

Ao repartir uma parcela, mesmo pequena, do faturamento da Fifa, Havelange obteve apoios fundamentais. Um exemplo: em 1997, ao ser atacado com virulência por causa do acordo com a ISL para 2002 e 2006, deu US$ 1 milhão para cada federação filiada, mesmo se ela, como a de Andorra, não tivesse campeonatos profissionais.

Quando Havelange presidia a CBD, o governo financiava as viagens da seleção às Copas, porque a Fifa praticamente não ajudava.

No Mundial da França, cada uma das 32 seleções terá US$ 500 mil para gastos com preparação, US$ 325 de diária para cada um dos 40 membros da delegação e US$ 750 mil por jogo. Os finalistas acumularão US$ 6,270 milhões.

Pode ser uma mixaria para uma confederação como a CBF, que só no contrato de dez anos com a Nike receberá US$ 220 milhões. Para a Nigéria, Camarões e Jamaica, porém, certamente não é pouco.

Até as seis confederações continentais, que não votam na Fifa, terão US$ 10 milhões cada na Copa.

Para a Uefa (União Européia de Futebol) isso é um trocado, pouco mais do que o atacante Ronaldinho ganha por ano com salário e publicidade. E na Oceania, onde o futebol tem pouquíssima tradição?

Ao ser indagado pela Folha sobre a imagem gostaria de ter daqui a cem anos, de esportista ou de estadista que fez a Fifa maior do que a ONU, Havelange diz: ''Quero ser lembrado como um administrador, que é o que eu sou''.

Talvez só em alguns anos seja possível fazer um balanço preciso sobre até que ponto Havelange contribuiu para fazer a revolução capitalista do futebol mundial, e da Fifa a sua maior expressão, ou se foi só um personagem que se adaptou com talento a seu tempo.

Quando ele chega à presidência da Fifa, consolida-se no mundo a dita aldeia global, com a TV passando a ser protagonista do entretenimento. É nesse contexto que o futebol cresce como negócio.

''Havelange foi a expressão política dos fatores de modernização do futebol mundial'', diz o ex- presidente do Flamengo Luiz Augusto Velloso, que faz um balanço positivo da gestão do brasileiro.
Seguindo o seu conceito de ''administrador'', o currículo de Havelange é impressionante.

Quando ele assumiu, a sede da Fifa era um sobrado onde o secretário-geral Helmut Kãser morava com a família e dois cachorros.

Sob o comando de Havelange, a entidade construiu uma nova sede, comprou um hotel e outras duas propriedades, montou e informatizou o maior centro de documentação sobre futebol no planeta, introduziu um centro de pesquisas médicas e começou a operar, em Neuchâtel (Suíça), a Universidade do Futebol, formando administradores para o esporte.

Mais do que o aumento do total de filiados, Havelange conseguiu, em seis anos de negociações dirigidas por ele próprio, a volta da China à Fifa, sem a saída de Taiwan.

Para convencer a China, Havelange propôs que a federação de Taiwan, parte minoritária que não aderiu à revolução de 1949, se chamasse ''Chinese Taiwan'', explicitando, como queriam os comunistas, a origem daquele país.

Numa negociação com os chineses, Havelange afirma ter dito que era mais paciente do que eles, e por isso obteria o acordo.

Ao conversar com o comandante militar de Taiwan, o presidente da Fifa não conseguia dobrá-lo, porque o governo queria que sua federação continuasse como ''China''. ''Eu tirei, então, da minha pasta, uma camisa com a etiqueta 'Made in Taiwan'. E disse: 'Um país é a sua marca registrada'. Então, ele aceitou.''

Foi com Havelange que a Fifa expulsou a África do Sul por causa do regime de segregação racial, convertendo-se num ponto de apoio importante para quem, dentro do país, lutava contra o apartheid. Agora, a África do Sul é candidata a sede da Copa de 2006.

Quando Havelange chegou à presidência da Fifa, a entidade promovia dois torneios a cada quatro anos. Hoje, são dez.

A Copa de 1974 teve 16 seleções. O aumento para 24 (Espanha-82), no centro da plataforma de Havelange, contribuiu para a obtenção de mais votos terceiro-mundistas. Na França-98, o total chega a 32.

Para o presidente da Fifa, a nova Copa reflete a expansão do futebol. Para os seus críticos, a ampliação é parte de uma política ''é dando que se recebe'' mais seleções, mais votos, rebaixando a qualidade técnica da competição.

O candidato de oposição à Fifa, Johansson, não menospreza os feitos: ''O presidente Havelange foi muito importante para a Fifa, mas chegou a hora de sair''.

A polêmica proposta é outra, tem três letras e permite entender como a Fifa se tornou, segundo Havelange, a maior multinacional do planeta: ISL, ou International Sports Leisure, empresa de marketing que há quase 20 anos detém o monopólio do futebol mundial.

Há quem diga na Europa que, se Havelange cancelasse todos os contratos da Fifa com a ISL e anunciasse concorrências inéditas, a oposição se desmancharia no ar. Talvez seja retórica, mas a relação Fifa-ISL pode indicar o contrário.

Ao vencer a eleição de 1974, Havelange encontrou uma entidade que vivia do dinheiro arrecadado com as Copas. Ex-árbitro e pesquisador das regras do futebol, Rous vivia a promover as virtudes do amadorismo e do "fair play".

Com a estrutura e a ideologia que herdara, seria impossível para Havelange cumprir o programa desenvolvimentista com que se elegera, principalmente o envio das missões técnicas à Ásia e à África e o Mundial de Juvenis.

Na reta final da campanha, assustado com o rival, Rous pediu e recebeu ajuda de um homem influente nos bastidores esportivos: o empresário alemão Horst Dassler, então dono da Adidas, fabricante de material esportivo.

O importante apoio de Dassler contou votos, mas não o suficiente. Após a Copa de 1974, o alemão se aproximaria de Havelange, tornando materialmente possível a implementação do seu programa.

Para uma empresa como a Adidas, o primeiro plano global de expansão do futebol empresarialmente concebido pela Fifa seria valioso para o seu crescimento.

A Adidas forneceu todo o equipamento necessário para os cursos que Havelange disseminaria. Mas isso não bastava _faltava dinheiro para as viagens e, principalmente, o Mundial juvenil.

Com ajuda de Dassler e seu sócio Patrick Nally que romperiam depois, a Fifa obteve da Coca- Cola o patrocínio para o primeiro torneio de jovens, na Tunísia, em 1977 (Copa Fifa/Coca-Cola).

Em 1981, na Austrália, o patrocínio já valia US$ 600 mil, com reserva de US$ 250 mil para o caso de a Fifa vir a ter prejuízo. Nos contratos, idealizados por Dassler e Havelange, passaram a ser proibidos placas ou qualquer anúncio agenciados por estádios, ficando o espaço para a Fifa vender.

Nascia aí o moderno formato do marketing esportivo, numa gênese detalhadamente narrada no livro ''Os Senhores dos Anéis _ Poder, Dinheiro e Drogas nas Olimpíadas Modernas'', dos ingleses Vyv Simson e Andrew Jennings, lançado no Brasil em 1992 pela editora Best Seller.

Em 1978, no Mundial da Argentina, controlada apenas parcialmente por Havelange (muitas definições ocorreram antes da sua posse) a Coca-Cola pagou US$ 8 milhões de patrocínio, uma fábula na história de Copas e Olimpíadas.

Em 1980, com o apoio de Dassler e Havelange e os ''seus'' votos do Terceiro Mundo, o espanhol Juan Antonio Samaranch é eleito para a presidência do COI (Comitê Olímpico Internacional), associação da qual o presidente da Fifa é membro desde 1963, três anos antes do ingresso de Samaranch.

Também em 1980, impressionado com o novo mercado que ajudara decisivamente a criar, Dassler abre uma agência de marketing. Em 1982, rompe com Nally e funda a ISL, com sede em Lucerna, na Suíça da Fifa e do COI.

Os direitos de exploração da Copa do Mundo de 1982 foram vendidos para a ISL, que um ano depois assinaria o seu primeiro contrato com o COI. Hoje, a empresa detém a exclusividade dos torneios da Fifa, da Olimpíada, dos Mundiais de atletismo, de basquete e de outros esportes.

De acordo com os autores de ''Os Senhores dos Anéis'', a porcentagem da ISL chegava a 25% do total arrecadado nos torneios. Hoje, para as Copas, a empresa paga uma taxa pré-estabelecida.

Foram a Fifa e o futebol, e não o COI e os seus esportes, que revolucionaram o marketing esportivo. Só em 1984, com a influência de Havelange, o Comitê Olímpico Internacional se renderia à publicidade, com, simbolicamente, balões do cigarro Camel voando pelos céus de Los Angeles (EUA).

A ISL, com contratos com a Fifa renovados até o século 21, cresce cada vez mais. Em 1983, em reportagem sobre contrato da empresa com o COI, o jornal norte-americano ''The New York Times'' diz: ''A IMG, International Management Group, declarou ter manifestado interesse, mas nunca foi convidada a apresentar proposta''.

Em 1995, a IMG, uma das maiores empresas de marketing esportivo do mundo, apresenta uma proposta à Fifa para comprar os direitos da Copa de 2002 (a de 1998 é a última do contrato com a ISL).
A polêmica provocada devido a essa negociação dividiu a entidade em dois blocos inconciliáveis.

A Folha obteve a correspondência completa entre IMG e Fifa sobre o caso, com algumas cartas antes não conhecidas no Brasil.

Com o alerta de ''strictly confidential'' (''estritamente confidencial''), em 18 de agosto de 1995, Eric Drossart, vice-presidente da IMG, enviou carta ao secretário-geral da Fifa, Joseph Blatter, no cargo desde novembro de 1981.

A IMG oferecia US$ 1 bilhão pelos direitos de TV e marketing em 2002, cerca de o dobro do que a ISL pagaria pelo Mundial de 1998.

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DEPOIMENTO

Futebol escondido
"O João sempre adorou futebol. Tinha de jogar escondido do pai. Nós jogávamos peladas numa quadra de tênis do Fluminense, ao lado do ginásio de basquete. Ele tinha o seguinte esquema: quando o velho Faustin entrava no clube, o porteiro ligava para um roupeiro e avisava. O João corria embora, sentava na arquibancada da piscina e esperava o pai. O velho era carne de pescoço", diz Davi Moscovite, ex-sócio de Havelange.

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Ao final, havia o registro de ''com cópias'' para Havelange e, especialmente, os membros do Comitê Executivo da entidade.

Era mais do que um detalhe: a IMG, propositalmente, vazava além do círculo Havelange-Blatter a discussão da sua proposta.

Em resposta, no dia 29 de agosto, Blatter condena duramente a distribuição da carta. Em 19 de setembro, pede detalhes da proposta da IMG relativos a produção, distribuição, penetração e controle das imagens de TV. Em 9 de outubro de 1995, Drossart responde, com itens básicos, a cada questão.

Uma carta fundamental na guerra que se abriria na Fifa foi assinada por Blatter, em nome da entidade, a 15 de novembro de 1995.

Ele informa que o contrato em vigor com o ''parceiro'' (ISL) estipula negociações exclusivas durante três meses, começando seis meses antes da decisão sobre que país será sede da Copa de 2002.

Também avisa: a escolha da sede de 2002 será em 1º de junho. A prioridade para a ISL, portanto, vai até 1º de março de 1996.

Dias depois, o executivo da IMG se reúne com dirigentes poderosos: o presidente da Confederação Africana de Futebol, Issa Hayatou, e o presidente da Federação Sul- Coreana, Mong Joon Chung, da família dona da empresa Hyundai.

Em 5 de dezembro, Drossart envia nova carta a Blatter, dando a entender que a IMG estaria disposta a cobrir qualquer oferta.

Surpreendendo até alguns membros na cúpula da Fifa, Blatter responde a Drossart, em 15 de março de 1996, duas semanas após o prazo para conversas exclusivas com a ISL. Em sua mensagem, escreve: "Nós gostaríamos de avisá-lo de que as negociações "exclusivas" com a ISL vão continuar''.

Em 29 de março, a IMG protesta, numa carta em que Drossart estranha nunca ter sido aberta negociação de fato sobre a proposta da IMG. Na Europa e nos EUA, várias reportagens dizem que a Fifa protege a ISL, ao não dar chance para a IMG elevar a sua oferta original.

Em 26 de abril, Drossart, num último esforço para abrir conversações, caracteriza de ''cosméticos'' os esforços para ''proteger a Fifa de futuras acusações de conduta injusta e imprópria''.

Final da novela: a ISL pagou mais do que o dobro da proposta original da IMG. Afastada a IMG de qualquer negociação com a Fifa, nunca se soube: 1) Quanto a IMG se disporia a pagar. 2) Se não fosse a surpreendente ''intromissão'' da concorrente no mundo do futebol, quanto a ISL ofereceria pelo Mundial de 2002.

Com controle do Comitê Executivo, Havelange e Blatter aprovam o novo contrato com a ISL.

A partir de então, o presidente da Uefa, Lennart Johansson, o africano Issa Hayatou e outros dirigentes passam a acusar Havelange de manter relações ''estranhas'' com a ISL.

Na eleição deste ano para presidente da Fifa, a mais importante questão é o posicionamento sobre a relação entre a entidade e a ISL.

A favor de Havelange, registre-se: até hoje, nunca, apesar de várias investigações, seus adversários conseguiram qualquer prova de que ele tenha participação na ISL ou em empresas que mantenham negócios com a Fifa.

Hoje, a ISL é controlada por dois grupos: a família Dassler (51%) e o grupo japonês Dentsu (49%).

Horst Dassler morreu de câncer em 10 de abril de 1987, aos 51 anos. A Adidas faturamento de US$ 2,2 bilhões anuais no ano da morte de Dassler hoje não pertence mais à sua família. É a fornecedora de uniformes da maioria das seleções que disputam a Copa-98, e é sua a bola oficial deste Mundial.

Não há informação sobre o faturamento da ISL nem de quanto os 12 patrocinadores na França lhe pagam. O sigilo faz parte do contrato, assim como do novo acordo assinado em 1997 entre a Coca- Cola e a Fifa, válido até quase o fim da primeira década do século 21.

Sobre a relação da entidade com a ISL, Havelange diz ser um ultraje qualquer referência ou mesmo suspeita de eventual procedimento obscuro de sua parte.

À parte a controvérsia sobre eventuais favorecimentos e interesses feridos, o modelo da Fifa, com uma entidade esportiva trabalhando com uma agência de marketing único, fez escola em todo o mundo, até no Brasil.

A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) escolheu a empresa Traffic e o COB (Comitê Olímpico Brasileiro), a Sportsmedia. A ruptura entre Havelange e Pelé se daria, em 1993, devido à disputa entre a Traffic e a Pelé Sports & Marketing por um contrato da CBF.

Outra fórmula de Havelange na Fifa copiada depois foi a ''ajuda'' às federações nacionais. Após sofrer com o boicote de países africanos em Montreal-76, dos EUA e aliados em Moscou-80 e da URSS e satélites em Los Angeles-84 os Jogos se desvalorizaram como produto, o COI criou o ''fundo olímpico'', inspirado na Fifa.

Acabaram os boicotes, porque eles implicariam perder a contribuição polpuda que o COI oferece.

O modelo Havelange de Copa começou a nascer em 1978, mas o presidente da Fifa ainda estava preso a contratos comerciais antigos.

As marcas do primeiro Mundial de um brasileiro à frente do futebol foram a maneira suspeita como os anfitriões levaram o título e dois assassinatos que mancharam de vermelho os porões do torneio.

Em 24 de março de 1976, os militares deram um golpe de Estado, derrubando a presidente constitucional, Isabelita Perón. Começava um governo que liquidaria fisicamente milhares de oposicionistas.

Os novos governantes decidiram manter a Copa, abrindo uma renhida disputa entre Exército e Marinha pelo controle do Ente Autárquico Mundial 78, nome oficial do comitê organizador do torneio.

Com o apoio da Aeronáutica, o presidente da República, general de Exército Jorge Rafael Videla, nomeia o general Omar Carlos Actis, seu colega de farda, para a presidência do comitê. A Marinha faz o vice, o capitão e futuro almirante Carlos Alberto Lacoste.

Actis e Lacoste começam a trabalhar juntos, mas divergências sobre gastos o general defendia controle estrito do orçamento logo os afastam, num confronto que tornou-se público, na medida em que a censura permitiu.

No dia 19 de agosto de 1976, o general Actis sai de casa de manhã para trabalhar, sem seguranças. À tarde, ele daria uma entrevista sobre austeridade orçamentária.

Às 9h30, porém, o seu carro é metralhado por atiradores escondidos numa camioneta, e ele morre. O governo acusa o grupo Montoneros, guerrilheiros de esquerda de inspiração peronista.

Nunca os Montoneros, ao contrário de outras mortes, assumiriam a responsabilidade por esse atentado. Em 1993, no livro ''El Terrorismo na Argentina'', cujos autores eram ligados ao regime militar encerrado em 1983, a morte de Actis também não aparece como obra montonera.

Depois do fim do ciclo militar, o almirante Lacoste foi denunciado à Justiça como o mandante do assassinato, mas não houve provas.

Depois da morte de Actis, o governo negociou um bem-sucedido acordo com os Montoneros para evitar ataques durante a Copa.

Funcionária da embaixada argentina em Paris e ligada aos militares, Elena Holmberg se opôs ao trato, conforme narram os jornalistas Andrés A. Bufali, Jorge D. Boimvaser e Daniel G. Cecchini em ''El Libro Negro de los Mundiales de Fútbol'', publicação editada em 1994, em Buenos Aires.

Holmberg havia preparado reuniões e conhecia todos os passos e personagens das negociações. Depois do Mundial, em 20 de dezembro de 1978, ela é sequestrada. Seu corpo aparece boiando num rio no dia 11 de janeiro de 1979.

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Anos 80
Espanha, torneio com 24 seleções
Na Espanha, em 1982, são 24 seleções, um aumento de 50% em relação a 1978. A proposta de incluir mais equipes no torneio foi um dos projetos de campanha de Havelange em 1974.

Camarões, estréia invicta
A seleção de Camarões conquista três empates em 1982 e é eliminada da Copa, mas torna-se a primeira sensação vinda da África. Na década anterior, a Fifa havia estimulado o futebol no continente.

China recebe torneio juvenil
Incluída em 1980 na Fifa, em negociação coordenada por Havelange, a China recebe cinco anos depois o primeiro Mundial juvenil. Os juniores estrearam em 1977, na Tunísia.

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CRÍTICA DE PELÉ À CBF LANÇA O CARTOLA EM DEFESA DO GENRO TEIXEIRA

Além do Mundial que incendiaria a Argentina numa grande festa, os militares deixaram outra grande herança, menos ''esportiva''.

Actis planejara gastar US$ 70 milhões com a Copa. Lacoste desembolsou US$ 520 milhões. Todo o tempo o almirante foi defendido por Havelange, que dividiu com ele a preparação do Mundial.

O brasileiro premiou Lacoste com um convite. De 1980 a 1984, ele foi o vice-presidente da Fifa, afastado por gestão do novo presidente eleito, o civil Raul Alfonsin.

A Copa-78 é também marco de um relacionamento difícil de Havelange com o futebol brasileiro.

Em 18 de junho, Brasil e Argentina empatam em 0 a 0. No dia 21, o time do capitão Cláudio Coutinho bate a Polônia por 3 a 1.

Horas depois, conhecendo o placar dos brasileiros, os argentinos enfrentariam a seleção peruana, precisando golear por pelo menos quatro gols para superar os brasileiros no saldo e chegar à final.

A Argentina vence por 6 a 0, um resultado para sempre suspeito. Não há provas de que tenha havido sido suborno. Mas, em linguagem jurídica, existe um quadro indiciário, conjunto de elementos que podem levar a uma conclusão:

1) O goleiro peruano, Ramón Quiroga, era argentino de nascimento. Ele sempre negou qualquer irregularidade;

2) De acordo com os autores de ''El Libro Negro...'', a Argentina obteve um lugar na decisão ''à razão de pouco mais de US$ 40 mil para cada gol'', referência aos supostos US$ 250 mil que teriam sido pagos a atletas do Peru;

3) Em setembro de 1979, o técnico Antonio D'Accorso e o preparador físico Jorge Fernandes disseram que o peruano Rodolfo Manzo confessou-lhes ter recebido US$ 50 mil para facilitar a goleada argentina. Os três trabalharam no clube argentino Vélez Sarsfield, para o qual Manzo se transferiu depois da Copa. O jogador negou;

4) Em 15 de junho de 1993, em em Cuenca (Equador), Cubillas, ex-atacante do Peru, indagado sobre a suposta ''armação'', disse à Folha: ''Aconteceu. Sei lá'';

5) Outro mistério foi como a Argentina, exausta depois do 1 a 1 com a Holanda no tempo regulamentar da final, correu tanto na prorrogação, quando fez dois gols.

No começo de 1998, um ex-integrante da comissão técnica do Boca Juniors, clube portenho no qual trabalhou no fim da década de 70, disse que na época a maioria dos atletas só conseguia jogar com o uso de estimulantes proibidos.

Depois daquele Mundial, Havelange disse que a Argentina havia organizado a melhor Copa da história, com absoluta lisura.

À Folha, Havelange disse que o Brasil não foi campeão por ter aceito como bom o empate em 0 a 0 com a Argentina, ter desistido de fazer mais gols no Peru ao chegar a 3 a 0 e porque o técnico Cláudio Coutinho deixou Rivellino na reserva. O então presidente da CBD era o almirante Heleno Nunes.

Em 1980, com o empresário Giulite Coutinho na CBF, já uma entidade exclusiva do futebol, Havelange proíbe o uso, no claro espírito do profissionalismo emergente na Europa, de um raminho de café, símbolo do Instituto Brasileiro do Café, na camisa da seleção.

Por essa época, Giulite Coutinho recusara uma sondagem da Adidas e preferira assinar com a concorrente Topper o contrato de fornecimento do uniforme da equipe.

Em duas tentativas da CBF, Havelange se opôs à realização de um Mundial no Brasil, barrando-o na prática. Na votação do Comitê Executivo da Fifa para a Copa de 1994, os EUA obtêm 10 votos, contra 7 do Marrocos e 2 do Brasil.

Em 1988, a candidatura de João Havelange é lançada por amigos suíços para o Prêmio Nobel da Paz. A essa altura, ele já está empenhado em fazer do empresário do setor financeiro Ricardo Teixeira, seu genro, o novo presidente da CBF, o que acaba por conseguir.

Em 1993, Havelange inicia uma queda-de-braço com Pelé que abalaria o esporte no Brasil e no exterior, com consequências que abririam o caminho para mudanças (potencialmente) drásticas no futebol nacional, com a nomeação do ex-jogador para o Ministério Extraordinário dos Esportes.

Para entender como Havelange saiu a campo contra Pelé, que chegou a chamá-lo de ''pai'', é indispensável conhecer os laços do dirigente com a sua família.

A relação com seus pais, Joseph Faustin e Juliette, foi decisiva na formação de Havelange. O casal teve três filhos: Júlio, João e Helena. Só João teve filhos, mais precisamente uma filha, Lúcia.

Com a tradição patriarcal brasileira, com o sobrenome paterno por último e o materno primeiro, os netos do presidente da Fifa não levariam o nome Havelange.

Em 1974, o então presidente da CBD diz não se preocupar com isso, que o importante é o amor que tem pela filha. Desde sempre, Havelange é um homem família.

Ele nunca esqueceria a data da primeira reunião na China para tratar da volta do país à Fifa, em maio de 1975, porque no mesmo dia o primeiro neto comemorava um ano e ele não pôde ir à festa.

Em dezembro de 1997, ao confirmar em Marselha (França), a 700 jornalistas, a proximidade da sua despedida da Fifa, Havelange diz querer tempo para ficar com os netos. Seus irmãos já morreram.

No mesmo ano em que afirmava aceitar com naturalidade, três gerações depois, o fim dos Havelange no Brasil, ele ganhou um presente o qual jamais esqueceria.

O genro, Ricardo Terra Teixeira, decide inverter os sobrenomes do primeiro filho com Lúcia Havelange, Ricardinho, o Rico. O mesmo ocorreria depois com Joana, a Jô, e o caçula Roberto, o Beto.

Hoje, Havelange diz o que fará ao deixar a Fifa: ''O que sempre fiz, trabalhar. Tenho a minha mulher, a minha filha, que eu adoro, que é a coisa mais preciosa da minha vida, a única coisa que eu tenho. E tenho os meus netos, que eu adoro, e são três: o Rico fisicamente sou eu, há uma continuidade. O Beto, eu adoro ele. A Joana é a minha paixão''.

No escritório da Fifa no Rio, a 100 m da sede da CBF, e onde as xícaras do cafezinho têm desenhados um ''J'' em dourado e um ''H'' em azul, Havelange tem em sua mesa fotos da filha e da neta.

É por isso que ele jogou todas as suas forças contra Pelé: porque o ex-jogador e atual empresário atacou Ricardo Teixeira, um homem que é amigo do ex-sogro até hoje, quando já se separou de Lúcia.

Em 1989, com a ajuda de Havelange, Teixeira é eleito presidente da CBF. A entidade passaria a ter os seus negócios intermediados pela agência de marketing Traffic, de propriedade dos ex-radialistas J. Hawilla e Kleber Leite.

A Pelé Sports & Marketing, empresa que tem o atleta do século como sócio, compete com a Traffic no mercado esportivo.

Numa concorrência por direitos de TV de um torneio da CBF, a empresa de Pelé perde para a Traffic. Documentos obtidos pela Folha mostram que, nesse caso, a proposta da Traffic era superior.

Pelé concede num hotel de Cuenca (Equador), em junho de 1993, uma entrevista ao jornalista Juca Kfouri que seria publicada pela revista ''Playboy''.

Em declaração com repercussão mundial, Pelé afirma haver corrupção na CBF. Mais: um sócio seu diz que dirigentes da entidade pediram US$ 1 milhão ''por fora'' pelo contrato e que a Traffic apresentou a proposta só depois de saber a oferta da concorrente.

Está declarada a guerra.

Até então, e o fato passou à época quase despercebido, Pelé era contratado, assalariado da Fifa, trabalhando como um tipo de promotor mundial do futebol.

Num gesto que deixaria os norte-americanos impressionados, em dezembro de 1993, Havelange cancela a participação de Pelé no sorteio dos grupos da Copa dos EUA, onde o maior artilheiro de todos os tempos jogou nos anos 70, pelo Cosmos, de Nova York.

Em 1997, em Marselha, Havelange repetiria o gesto, numa de suas últimas decisões na Fifa. Pelé iria ao estádio Vélodrome na condição de garoto-propaganda do cartão de crédito Mastercard.

Na frente interna, o grupo atacado por Pelé, e que tinha em Havelange o seu maior advogado, agia.

Em 1994, Kleber Leite, sócio da Traffic, se candidata à presidência do Flamengo, um dos maiores clubes do país. Em dezembro, o ex-radialista ganha com folgas.

Num gesto raro, Havelange, presidente de honra do Fluminense, tricolor histórico, envia carta de apoio a Leite, que a usa como peça fundamental de campanha.

Às vésperas do pleito, surgem gravações clandestinas em que Leite fala do Flamengo e outros temas. Com a voz reconhecida por todos os que ouviram a fita, ele trata com outra pessoa do ''caso Pelé'', com uma proposta que seria ''esquecida'' até pelo então ministro, em 1996, numa visita ao Flamengo, para, ao lado de Leite, defender a candidatura do Rio aos Jogos Olímpicos de 2004.

A proposta: contratar uma prostituta para dizer em um programa de TV que Pelé é impotente sexual. Objetivo: ''quebrar a credibilidade'' do ex-atleta. O diálogo:

Suposto Leite: ''Se juntar uma puta e fizer uma entrevista coletiva, e ela falar que o Kleber é brocha... Tá bom, vão me sacanear, morreu. Se uma puta fizer uma conferência de imprensa e disser que o Pelé é brocha, lá na Indochina vai ter manchete: 'Pelé é brocha'.''

Quando o interlocutor pergunta se ''vale a pena isso'', o suposto Leite responde: ''Claro que vale, vale qualquer porra. Você, para sacanear alguém, tem que ficar procurando coisas''. Para o suposto Leite, ''a intenção desse cara "Pelé" é tumultuar, fragilizar''.

O plano, nunca posto em prática, seria convidar Pelé para um programa esportivo que vai ao ar no Rio nos domingos à noite. Seriam chamadas as principais agências internacionais de notícias. Então, apareceria uma mulher afirmando ter o ex-jogador fracassado sexualmente com ela.

Na tramitação no Congresso do projeto Pelé (que transforma clubes em empresas), o ex-ministro falou várias vezes com Leite, que via pontos positivos na proposta.

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Anos 90
Em campo, a vez das mulheres
A Fifa organiza em 1991 o primeiro Mundial de futebol feminino. Em 1996, a modalidade é incluída nos Jogos Olímpicos de Atlanta (EUA). Havelange cumpre mais uma promessa de 1974.

Duas grandes divergências
Uma entrevista de Pelé, em 1993, sobre a CBF inicia conflito entre o ex-atleta e Havelange. A Uefa exige poder para as confederações continentais, opondo Lennart Johansson ao presidente da Fifa.

Maior Copa de toda a história
A partir desta quarta, 32 seleções começam a disputar o Mundial da França. Na maior competição da era Havelange, a entidade mundial do futebol vai pagar US$ 6,27 milhões aos finalistas da Copa.

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Enquanto isso, João Havelange ameaçava o Brasil de não disputar a Copa da França, caso o projeto fosse aprovado na íntegra.

Curiosamente, o homem que revolucionou o futebol é, no Brasil, aliado de dirigentes avessos a reformas, como o presidente da Federação de Futebol do Rio, Eduardo Viana.

No país de Havelange, a estrutura do futebol tem sido nefasta para os clubes, como prova o próprio Fluminense de Havelange, com dívidas de mais de R$ 20 milhões.

Cinco anos após o início da briga, a Traffic está mais forte do que nunca, negociando acordos como o CBF-Nike. É a maior agência de marketing do futebol brasileiro.

Pelé, por sua vez, se fortaleceu no ministério e continua ganhando dinheiro no esporte, cedendo a imagem a produtos de mais de 20 países. Faz campanha no mundo inteiro pelo candidato de oposição a Havelange, Lennart Johansson.

Em 1958, contra críticos que consideravam Pelé muito jovem, o presidente da CBD bancou o garoto de 17 anos na delegação.

Nos anos 70, Pelé foi importante para Havelange conquistar na África votos decisivos para a Fifa.

Hoje, isso é só passado.

Talvez nem João Havelange, com todo o seu pragmatismo, saiba o que lhe espera no futuro. A dificuldade em prever os seus passos decorre, especialmente, de um relógio biológico incomum.

Para a maioria dos mortais, os anos funcionam como um descarregador de baterias, diminuindo o ritmo, por vezes a têmpera. Havelange, ao contrário, parece comprar mais brigas, novos desafios.

Nos últimos anos, porém, o acúmulo de desafetos e o crescimento do bolo em jogo no mercado dos negócios do futebol lhe provocaram derrotas antes inusitadas.

Em 1996, teve de aceitar a divisão da sede da Copa de 2002 entre Japão e Coréia do Sul, para não ver a candidatura dos amigos japoneses humilhantemente batida na Fifa.

No ano passado, Havelange anunciou que amizades e favores a ele devidos valeriam a classificação do Rio para as finais da disputa da sede da Olimpíada de 2004.

Em Lausanne, na Suíça, ofereceu um jantar para a delegação carioca _não faltou um brinde à vitória. No dia seguinte, o Rio foi humilhado. Havelange saiu pelos fundos, sem dar declarações.

Apesar dos raríssimos sorrisos e da postura permanentemente enclausurada, Havelange às vezes parece extremamente passional.

Por toda a vida, foi fiel a amigos como Abílio d'Almeida, que de diretor da CBD transformou-se num dos homens fortes da Fifa. Com colegas do Fluminense, o mesmo carinho _até hoje, muitos são convidados para a Copa e outros eventos, com tudo pago.

Com aqueles com quem rompe, contudo, vinga-se sumariamente.

Na final de 1990, com a Argentina vencida pela Alemanha, Maradona se uniu à torcida para xingar a cúpula da Fifa. Coincidência ou não, só teria problemas depois.

Com Pelé, mais do que tirá-lo de dois sorteios de Mundiais, Havelange ousou dizer que o ex-atleta "é algo do passado, sem nenhuma importância para o futebol".

Até hoje, o presidente da Fifa mantém a média de 800 horas anuais de vôo. Tem quase 30 mil horas somadas, rivalizando com muitos pilotos internacionais.

Nem ele pode dizer com certeza quantos países filiados à Fifa visitou, mas já ultrapassou os 190.

Como no começo da carreira, cuida até de detalhes quando estão em questão interesses maiores. Na tramitação do projeto Pelé, escreveu à Coca-Cola em busca de ajuda para um estádio do Espírito Santo, pleito de um deputado federal do PSDB local, como mostra documento obtido pela Folha.

Por ano, Havelange diz enviar 12 mil cartas, sem contar os impressos padronizados da Fifa. É uma rotina alucinante para quem nasceu durante a Primeira Guerra e atravessou a Segunda, presenciou os movimentos militares de 1930 e 1964 e comandou o futebol mais tempo do que, por duas vezes, Getúlio Vargas governou o Brasil.

"Nesses 24 anos, mais de 8.000 dias, esteve hasteada em Zurique a bandeira brasileira", afirma Havelange. "De 1.400 reuniões, se faltei a quatro foi muito, porque tinha outras obrigações."

Com essa disposição, é difícil acreditar que Havelange vá se dedicar agora só à família e à administração de um patrimônio cuja dimensão real é desconhecida.

No Rio, ele mora com a mulher num apart-hotel onde duas unidades foram unidas para o casal. Nos fins-de-semana, vai para a casa de Angra dos Reis, litoral fluminense.

Ao contrário do antigo genro Ricardo Teixeira, que até hoje o trata por "Giovanni" na intimidade, Havelange dispensa seguranças.

Na Fifa, continuará como presidente de honra ou em outro cargo honorífico. Do COI, é um dos raros membros vitalícios. Poucos crêem numa aposentadoria real.

Se, para barrar Lennart Johansson e a oposição, não fosse indispensável um novo candidato, com um discurso relativamente renovador, como Joseph Blatter, não gostaria João Havelange de prosseguir à frente da Fifa?
Ele deixa a entidade quando, transformado num grande negócio, o futebol produz hábitos como uma seleção escolher adversários baseada na empresa de material esportivo que veste o duelista.

Por outro lado, o esporte mais popular do mundo, com a sua internacionalização, pode produzir um time como a Nigéria, campeã olímpica em 1996, encantando o mundo. Nos tempos pré-Havelange, isso seria impensável.

Com ele, a Fifa é a principal sentinela contra mudanças como o uso da TV para auxiliar a arbitragem. Mas, com novidades como a proibição da defesa do goleiro em bolas atrasadas com os pés e a expulsão do jogador que dá carrinho por trás, a entidade tem contribuído para melhorar o futebol.

Até 2008, formalmente fora da presidência, Havelange terá sido o responsável pelos contratos da Fifa. Na França, um moleton de R$ 18, com motivos do Mundial e comprado num supermercado, tem uma etiqueta dizendo que os direitos são da ISL _que, portanto, receberá os royalties.

O mesmo acontecerá na Ásia, em 2002, e em 2006. Quando esta Copa acontecer, provavelmente já terão nascido bisnetos do homem que revolucionou o futebol, todos com o sobrenome Havelange.

Com o seu modo grave, mesmo para quem lhe é próximo, ele parece à espera de ser decifrado. Na opinião de um antigo conhecido, "Havelange criou um personagem que talvez seja ele mesmo". Com o que lhe resta de poder, ainda tem história pela frente no futebol brasileiro e internacional. O seu último capítulo está por ser escrito. De certo, se sabe o que o cartola do século disse a respeito da sua ameaça ao dirigente espanhol que lhe recusara os 400 ingressos: "Eu nasci assim, vou morrer assim".


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