Folha de S. Paulo


Indócil, Simeone se consagra como o maior técnico do Atlético de Madri

Se ganhar a decisão da Liga dos Campeões da Europa no próximo sábado (28), o técnico argentino Diego Simeone será definitivamente entronizado como deus da religião que ele mesmo fundou: o cholismo.

Simeone, conhecido como "El Cholo" (caboclo, em castelhano), é o treinador mais vitorioso dos 105 anos de história do Atlético de Madri: cinco títulos em quatro temporadas, duas finais de Liga dos Campeões em três anos.

No cholismo, o lema é "nunca deixe de crer". A filosofia de jogo é aplicar intensidade máxima na marcação durante os 90 minutos e fulminar no contra-ataque. A meta, a vitória. O placar favorito, 1 a 0.

Quando o Atlético de Madri venceu a primeira partida da semifinal contra o Bayern, por 1 a 0, o jornal italiano "La Gazzetta dello Sport" titulou na capa: "Revolução do cholismo contra o tiki taka".

Era uma referência ao estilo de jogo de posse de bola do Bayern do técnico Pep Guardiola, do Barcelona e da seleção espanhola.

Para os especialistas, o cholismo é um fenômeno que só tem comparação com a marca que Johan Cruyff deixou no Barcelona.

Para os críticos, como o espanhol Xavi Hernández e o alemão Karl-Heinz Rummenigge, é um estilo de futebol feio, retranqueiro, que não merecia eliminar o jogo vistoso do Barça ou do Bayern.

"Não perco um segundo em analisar [as críticas]. Me preparo para ganhar, não para agradar", respondeu Simeone em Munique.

O temperamento passional do treinador funciona como motor da equipe, mas algumas vezes ele avança o sinal: na segunda partida da semifinal, no Allianz Arena, o argentino teve que ser contido por jogadores do Bayern em uma tentativa de agressão ao auxiliar do quarto árbitro, que demorou para levantar a placa de substituição de um jogador, já nos acréscimos.

Livre da tensão após o apito final, Simeone sacou o celular e se emocionou ao conversar por Facetime com o filho mais velho, Giovanni, 20, jogador de futebol na Argentina, assim como os irmãos Gianluca (18) e Giuliano (14).

Simeone já havia sido suspenso do banco nas três últimas partidas do Campeonato Espanhol. A punição veio porque o banco do Atlético lançou no gramado uma segunda bola que parou um contra-ataque do Málaga.

Onde os críticos viram descontrole emocional, os fãs elogiaram a picardia argentina. Para os fiéis do Atlético, o cholismo é uma devoção.

Juan Medina/Reuters
Simeone sinaliza durante treino do Atlético de Madri
Simeone sinaliza durante treino do Atlético de Madri

"O futebol, antes de ser estilo, é paixão. Divertir-se é ganhar, é chegar a finais. É sentir a possibilidade de ganhar –e de perder– todas as partidas. Não vejo graça em ganhar por 10 a 0", diz o torcedor Jesús Gómez, 60.

No altar do Camp Nou, o ídolo é Lionel Messi, 28. No do Santiago Bernabéu, Cristiano Ronaldo, 31. No Calderón, casa do Atlético, quem faz milagre é Diego Pablo Simeone, 46, em sua segunda encarnação no clube.

Assentar seu projeto sobre um treinador, e não sobre um jogador, foi uma escolha inteligente dos dirigentes do Atlético, um clube mais modesto (para os padrões da Europa) que os dois gigantes espanhóis.

O time que vai à final, avaliado em 287 milhões de euros pelo site especializado Transfermarkt, vale a metade dos elencos dos rivais Real Madrid (553 milhões) e Barcelona (565 milhões). Jogador mais caro do Atlético, o atacante francês Antoine Griezmann tem o passe cotado em 60 milhões de euros, metade do valor de Messi ou Ronaldo.

"Simeone utiliza à perfeição as armas que possui. O Atlético não tem os jogadores de que dispõem o Barcelona ou o Real Madrid, mas consegue competir com esses times porque joga com muita intensidade todo o tempo", diz o repórter Alberto Barbero, 43, que cobre o Atlético de Madri desde 2000, quando o clube estava na segunda divisão.

Ex-jogador do time, onde atuou como volante e foi um dos heróis do título de campeão do Campeonato Espanhol de 1996, Simeone voltou ao clube como técnico em 23 de dezembro de 2011.

Pegou o time em má fase e deu início a uma revolução que tornou o Atlético grande. A intensidade que havia marcado seu estilo como jogador estava intacta.

Em 1996, o argentino não deixou os companheiros espanhóis dormirem a sesta antes da final da Liga. Como treinador, é indócil e tenso, grita o tempo todo à beira do gramado.

"O mesmo estilo lutador, guerreiro, que Simeone tinha como jogador, é o que ele passou a transmitir como técnico. É um comandante, um diretor de orquestra, que rege também a arquibancada", comenta o apresentador de esportes da TVE Jesús Álvarez, 58.

A revolução de Simeone teve como pedra angular um sistema defensivo que chega perto de ser inexpugnável. No Campeonato Espanhol encerrado no penúltimo fim de semana, sofreu apenas 18 gols em 38 jogos. O Barcelona, campeão, foi vazado 29 vezes.

O outro eixo do sucesso é psicológico. Simeone conseguiu implantar uma mentalidade vencedora no clube que tem a torcida mais fanática da Espanha.

"Simeone insuflou confiança não só nos jogadores, ele nos deu fé também aos torcedores. Colocou na cabeça de todos a ideia do triunfo", conta o torcedor Juan Luis Costea, 57, sócio do Atlético há 20 anos, depois de comprar ingressos para assistir à final em Milão com o filho.

Juan Medina/Reuters
Simeone durante treino do Atlético de Madri
Simeone durante treino do Atlético de Madri

TRIUNVIRATO

Simeone é um treinador obsessivo, que estuda minuciosamente os adversários e cobra nos treinos o mesmo empenho que se espera em um jogo.

Mas a rotina de trabalho no centro de treinamento do clube, em Majadahonda, subúrbio rico de Madri, não é mais longa que a dos outros clubes, e ele não é prolixo nas orientações.

Os gritos que fazem ecoar sotaque portenho no campo de treino saem da garganta de seus auxiliares, o argentino Germán Burgos e o uruguaio Óscar Ortega.

Burgos, ex-goleiro do Atlético e da seleção argentina, é o segundo treinador, responsável pelo trabalho individual com os atletas.

Simeone é conhecido por lapidar jogadores, extraindo de cada um o que tem de melhor. Foi assim com Griezmann, que teve aperfeiçoada sua capacidade de finalização até se tornar o artilheiro, marcando 22 dos 63 gols do time na Liga.

A outra peça do tripé é o "Profe" Ortega, o homem que coloca os músculos e os pulmões dos jogadores em condições de atender às exigências de Simeone.

Foi assim com o centroavante Fernando Torres, 32, que voltou na atual temporada ao clube que o revelou.

Fora de forma, Torres chegou a ser barrado por Simeone, que lhe deu um recado claro: nenhum jogador vive "de renda", de glórias passadas.

Após trabalho duro, ele conquistou a confiança da comissão técnica e ganhou a posição de titular com gols decisivos. Com Simeone, é "ame-o ou deixe-o". O jogador que não se adapta ao seu estilo tem os dias contados no clube.

RENOVAÇÃO

Para os torcedores, o maior pesadelo é que Simeone vá embora. O clube renovou seu contrato até 2020, mas ao final de cada temporada há uma reavaliação.

O Atlético tem dificuldades para manter suas estrelas, mas está trabalhando para evitar a repetição do desmanche ocorrido após a final da Liga dos Campeões de 2014.

Logo depois da derrota para o Real Madrid, em Lisboa, o Atlético perdeu o goleiro Courtois, o lateral Filipe Luís (que retornou depois de um ano no Chelsea), e os atacantes Diego Costa e David Villa.

Também saíram o zagueiro Miranda e o meia Arda Turán. O núcleo duro do time de Simeone, integrado por Juanfran, Godín, Gabi e Koke, sobreviveu.

Em 2015, o clube recebeu uma injeção de capital do grupo chinês Wanda, que se tornou sócio ao aportar 45 milhões de euros.

O Atlético ainda precisa vender antes de comprar, mas um mérito reconhecido de Simeone e da diretoria é o alto índice de acerto nas contratações.

"O que lhe falta em poderio econômico, o clube compensa com acertos nas contratações", diz Jesús Álvarez.

No momento, a prioridade é renovar ou prolongar os contratos das novas estrelas. Além de Griezmann, são considerados fundamentais o atacante-revelação Saúl, que acaba de ser convocado para a seleção espanhola, e o goleiro Oblak, que substituiu Courtois à altura.

Tudo para que o sonho do cholismo continue vivo.


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