Folha de S. Paulo


Cruyff arquitetou revolução que mudou de vez o futebol

Na manhã de 14 de fevereiro, Johan Cruyff definiu sua luta contra o câncer com uma metáfora futebolística: "Estou no intervalo do jogo e vencendo por 2 x 0." Naquele mesmo dia, Messi e Luis Suárez lhe prestaram uma homenagem inconsciente.

Na cobrança de pênalti contra o Celta, Messi rolou a bola de lado e o centroavante uruguaio fez o gol numa cobrança em dois toques. O gênio holandês fez isso 34 anos antes.

Cruyff nasceu numa rua estreita de Amsterdã, ao lado do velho estádio De Meer, usado pelo Ajax até 1996. Sua vida foi sempre ali, até a transferência para o Barcelona, em 1973.

A esta altura, já era tricampeão europeu, títulos conquistados em 1971, sob o comando de Rinus Michels, em 1972 e 1973, com o romeno Stefan Kovacs como treinador. As campanhas do bi e do tri foram a mais perfeita expressão do futebol total.

Michels transferiu-se para o Barça antes, em 1971. Levou todos os seus conceitos, mas não seu principal realizador. Cruyff só chegou na temporada 1973/74. Juntos, fizeram mais do que erguer o troféu depois de 14 anos. Aniquilaram o Real Madrid com impiedosos 5 x 0 no Bernabéu.

O jogo memorável aconteceu quatro meses antes de a Holanda estrear na Copa e atropelar o Uruguai: "Eu não entendia de onde saíam tantos jogadores vestidos de laranja", disse Pedro Rocha.

A Holanda teve só três jogos sob o comando de Michels antes da Copa. O conceito de jogo funcionava porque ele e Cruyff se conheciam desde 1964 e havia cinco jogadores do Ajax em campo, sem contar o centroavante do Barcelona.

Centroavante?

Cruyff fazia nos anos 1970 um pouco do que se convencionou chamar de falso 9, quando Messi foi escalado assim por Guardiola.

Fazia da função de atacante um jogo de espaços e obrigava os zagueiros a tentar decifrar seu enigma. Sempre que algum tentava persegui-lo, abria-se um lugar por onde outro jogador poderia jogar. Sempre que alguém se preocupava com outro nome, um vazio ficava à disposição para Cruyff desfilar seu talento.

Cruyff levou o quebra-cabeças do campo para a função de técnico. No Ajax, foi campeão da Recopa Europeia fazendo de Marco Van Basten o mais perfeito centroavante de seu tempo. Depois, no Barcelona, montou o time que elevou a autoestima dos catalães. Primeiro, acabou com a hegemonia do Real Madrid, pentacampeão entre 1986 e 1990. Depois, construiu a maior supremacia do Barça, tetracampeão de 1991 a 1994. Acima de tudo, deu ao clube seu primeiro título da Liga dos Campeões, em maio de 1992, dois meses antes de se acender a tocha olímpica na Catalunha.

Em 1993, contratou Romário, com quem teve um caso de amor e ódio. Cruyff amava o talento do Baixinho e odiava sua irresponsabilidade. "Gostaria que marcasse um gol por jogo em vez de fazer três em uma partida e depois passar três jogos sem marcar", disse a este colunista, quatro dias depois de Romário aniquilar o Real Madrid em outra goleada por 5 x 0.

Cruyff foi o arquiteto da revolução que trouxe ao futebol moderno. Pena que o segundo tempo de sua luta contra o câncer tenha consumido sua vida, como a Alemanha fez com a Holanda na final da Copa de 1974.


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