Folha de S. Paulo


Com Fidel ainda no poder, beisebol quebrou o gelo entre EUA e Cuba

Angel Franco/The New York Times
Seleção cubana de beisebol enfrenta o Baltimore Orioles, dos EUA, em 1999, em Havana
Seleção cubana de beisebol enfrenta o Baltimore Orioles, dos EUA, em 1999, em Havana

Na tarde desta terça-feira (22), o Tampa Bay Rays jogará um amistosocontra a seleção cubana de beisebol em Havana. O momento certamente será importante, mas nem tanto quanto uma partida que o Baltimore Orioles disputou no mesmo local 17 anos atrás.

O jogo aconteceu em 28 de março de 1999, em um momento no qual o embargo dos Estados Unidos contra Cuba tornava virtualmente impossíveis empreendimentos norte-americanos no país. Peter Angelos, dono do Orioles, era forte crítico do bloqueio à ilha, no entanto, e tentava promover uma melhora no relacionamento entre os dois países via beisebol.

Ele havia tido solicitações anteriores de levar seu time a Cuba negadas pelas autoridades, mas quando o presidente Bill Clinton anunciou um relaxamento das restrições de viagens de norte-americanos ao país, Angelos, doador de verbas para as campanhas de Clinton, apelou uma vez mais e recebeu autorização para levar sua ideia adiante.

Bud Selig, então comissário da Major League Baseball (MLB), apontou Sandy Alderson, hoje diretor esportivo do Mets mas na época um dos principais assessores do comissário, para coordenar o processo. Alderson, Angelos e um pequeno grupo de dirigentes de beisebol viajaram a Cuba no começo de março de 1999 a fim de preparar o terreno para o amistoso.

Semanas mais tarde, o Orioles jogou contra a seleção cubana, a primeira visita de um time da primeira divisão do beisebol profissional norte-americano à ilha em 40 anos. Cinco semanas mais tarde, as duas equipes jogaram uma revanche em Baltimore.

Em entrevistas recentes, participantes desses jogos recordam o passado, em muitos casos ainda maravilhados com o que aconteceu.

A GÊNESE

Peter Angelos, proprietário do Orioles: "Sempre achei que o embargo era um erro, e não havia dado certo. Para mim, era um infortúnio e jamais deveria ter acontecido. E por isso eu achava que tínhamos de deixar tudo aquilo para trás e reestabelecer o diálogo. Sentia que os dois países podiam se aproximar e deixar de lado suas diferenças, e que melhor maneira de começar do que pelo beisebol, o esporte nacional de ambas as nações?"

Sandy Alderson, o homem de ponta da MLB para as negociações com os cubanos: "Não acho que a MLB teria conseguido sem a pressão de Pete. A história terminou lhe custando muito dinheiro, porque coube a ele cobrir todos os prejuízos".

Brady Anderson, um dos principais jogadores do Orioles, na época: "Eu era favorável à ideia. Queria jogar contra a seleção cubana. Sempre tinha sonhado com jogar internacionalmente, mas nunca tive a oportunidade de disputar uma olimpíada. Sabia que seria histórico, interessante e sem precedentes".

Angel Franco/The New York Times
Torcedores cubanos durante jogo da seleção de beisebol do país contra Baltimore Orioles, dos EUA, em 1999, em Havana
Torcedores cubanos durante jogo da seleção de beisebol do país contra Baltimore Orioles, dos EUA, em 1999, em Havana

AS PROVAÇÕES FINAIS

O Orioles e a MLB precisavam de permissão do governo dos Estados Unidos antes que o jogo pudesse acontecer. Tanto Clinton quanto sua secretária de Estado, Madeleine Albright, intervieram quanto à questão.
Alderson: "O que recordo como mais fascinante foi o trabalho preliminar, a etapa preparatória em Washington e Havana. Fomos à Casa Branca e conversamos com Sandy Berger, que era assessor de segurança nacional, na época. Fomos ao Departamento de Estado".

"Não tivemos de convencer as pessoas a respeito, mas havia claramente elementos diferentes do governo com pontos de vista diferentes. Foram o presidente Clinton e Pete Angelos que forçaram a aprovação".

"A grande questão era o que aconteceria com a renda da partida. Ela beneficiaria o governo Castro? Eu repetia sem parar que não haveria renda, porque o custo da produção de TV, o custo do transporte dos jogadores, e da reforma do estádio, e todas as acomodações, etc., consumiriam todo o dinheiro. E ouvi dizer que o preço médio de um ingresso para a partida era de, tipo, 10 centavos de dólar. Infelizmente, a maior parte dos espectadores era de dirigentes do partido".

PREPARATIVOS PARA O 1º JOGO

Alderson: "A ESPN já estava com a agenda cheia no dia que tínhamos em mente. Recordo que estavam dispostos a liberar a agenda, mas não a pagar qualquer custo, incluindo o custo de produção, o que acredito incluía transportar o equipamento da Flórida para Cuba".

"Havia coisas que éramos proibidos de transportar e teriam de ser enviadas do Canadá; a proteção acolchoada para os muros do outfield, por exemplo. O estádio inteiro precisava ser reformado - o gramado, a terra no infield".

"Por causa das sanções, não era permitido levar nada que ficasse no país. Tudo que fosse levado teria de voltar conosco ou, se ficasse em Cuba, teria de ser licenciado ou vir de um terceiro país. Assim, boa parte do equipamento, incluindo os suprimentos e equipamento para cuidar do gramado, veio do Canadá".

Danilo Valiente, hoje membro da comissão técnica do Yankees e na época jogando como terceira base na seleção nacional cubana (ele falou conosco na semana passada com a ajuda de um intérprete): "Antes do jogo, estávamos preocupados porque na nossa liga não usávamos tacos de madeira. Só teríamos 10 a 15 dias para treinar com eles. Havia muita expectativa dos torcedores quanto a nós. Queriam que nos saíssemos bem, mostrássemos nosso talento".

Peter Schmuck, repórter do "Baltimore Sun", que acompanhou a primeira delegação a Cuba: "A fim de entrar no avião, tive de ser descrito como assistente especial do dono do time, porque os cubanos não queriam admitir jornalistas. Mas não os enganamos. Quando chegamos, um funcionário cubano se aproximou e disse 'Bem vindo, Peter Schmuck, assistente especial de Peter Angelos e repórter do 'Baltimore Sun''".

A CHEGADA DOS NORTE-AMERICANOS

Anderson: "Lembro-me do cheiro do país. Um cheiro bom, se é que isso não vai parecer estranho. Um cheiro de casca de laranja queimada".

Angelos: "Descemos em um aeroporto às escuras. Fomos para lá em um voo comercial, e nosso pouso foi liberado. Tudo estava escuro. Havia um ônibus lá, e um funcionário do governo cubano; embarcamos no ônibus e fomos para Havana".

"O que testemunhamos foi a capital de Cuba literalmente desabando, pulverizada, com o embargo que impusemos ao país".

Alderson: "Havia pessoas na linha dura do governo, lá, que não estavam superentusiasmadas com a ideia. Nem todo mundo estava feliz por ver os 'americanos'".

"Havia muitos intermediários e tradutores. Pessoas não paravam de dizer que havia escutas na sala. Era como a guerra fria. Havia gente que nos passava bilhetes para que entregássemos nos Estados Unidos.

Angel Franco/The New York Times
Fidel Castro com jogadores da seleção cubana em 1999
Fidel Castro com jogadores da seleção cubana em 1999

O JANTAR DE ESTADO

Na noite anterior ao jogo, o presidente de Cuba, Fidel Castro, ofereceu um jantar de Estado. Seu irmão, Raúl, também estava presente.

Bud Selig, então comissário da MLB: "Chegamos ao hotel e minha mulher me disse que queria ver o centro de Havana no sábado à noite. O telefone tocou em nosso quarto, e tudo me lembrava meu pai nos anos 50, tudo que se via - telefones, hotéis, carros, tudo. A voz do outro lado disse 'palácio, 19h'. Eu disse à minha mulher que ficaríamos 15 ou 20 minutos com ele e depois iríamos passear. Chegamos lá e, 45 minutos depois, entra Fidel, vestido exatamente como as pessoas o viram por 40 anos. Ele nos convidou para jantar".

'Só saímos de lá às três da manhã. Eu arriscaria dizer que foi um jantar de sete pratos, mas na verdade poderiam ter sido 27; perdi a conta. Conversamos muito. Foi uma experiência notável".

Angelos: "Divertimo-nos muito conversando com ele, falando dos problemas que os dois lados enfrentavam. Nós, norte-americanos, ou pelo menos era assim que eu me sentia, achávamos que os dois países precisavam voltar a se aproximar, e ele parecia muito disposto a, e até ávido por, falar sobre isso, ainda que eu tenha lhe dito claramente que não tinha autoridade para falar sobre o assunto. Era só minha opinião pessoal".

"Alguns outros proprietários de clubes foram conosco. Eles tiveram um jantar de Estado de primeira classe com Fidel. Raúl também estava lá, e foi tudo cordial, muito agradável e positivo. Foi uma confirmação do que eu esperava. A suposição de que não havia como nos aproximarmos era uma avaliação incorreta".

Alderson: "Muitos proprietários viajaram para lá por conta própria. Nós lhes dizíamos que eles não estavam autorizados a viajar para Cuba em seus jatinhos, mas eles o fizeram mesmo assim".

"Tivemos um jantar com Castro. O cara é uma figura histórica, e foi interessante conhecê-lo. Por meio de seu intérprete, ele perguntou sobre as academias de beisebol na República Dominicana. Era bem claro que ele estava interessado em fazer o mesmo em seu país".

"Lembro-me de ele dizer que ele era melhor no basquete que no beisebol, e que muito do que diziam sobre ele e o beisebol era apócrifo".

OS PROTESTOS

Alguns jogadores e treinadores nascidos em Cuba, bem como alguns políticos norte-americanos, se opuseram à viagem, afirmando que ela reforçaria o regime de Fidel. Cookie Rojas era treinador de terceira base no Mets na época. Bobby Valentine era diretor esportivo do Mets, e Rey Ordonez, fugitivo de Cuba, jogava como shortstop no time. Rafael Palmeiro, nascido em Cuba, era arremessador do Orioles.

Rojas: "Discordei fortemente da decisão, porque não queria fazer coisa alguma que apoiasse Castro. Achava que fosse uma má ideia, e decidi que não participaria, em protesto. Falei com Bobby Valentine e lhe contei o que sentia, e ele respeitou minha posição e me entendeu. Rey Ordonez fez o mesmo".

Anderson: "Eu compreendia os protestos. Rafael Palmeiro não foi. A questão polarizava muito, e ainda o faz. Mas era uma tentativa, da parte de um proprietário de time com ideias muito avançadas, de usar o beisebol como maneira de superar a distância entre os dois países e normalizar as relações".

Anderson: "Eu imaginava que fosse haver alguma reação, porque Castro era caracterizado como comunista, e de todas as maneiras mais negativas".

Angel Franco/The New York Times
Torcida cubana em jogo de beisebol da seleção local em 1999
Torcida cubana em jogo de beisebol da seleção local em 1999

O JOGO

O Orioles venceu a seleção cubana por três a dois. José Contreras, que mais tarde fugiria para os Estados Unidos, arremessou durante oito períodos pela seleção cubana, sem permitir pontos norte-americanos, e só permitiu duas rebatidas, eliminando 10 rebatedores. Cuba empatou o jogo no oitavo período em uma corrida de Omar Linares, e Harold Baines definiu a vitória do Orioles no 11º período.

Alderson: "Pelo que me lembro, os cubanos deveriam ter ganho aquele jogo".

Selig: "A atmosfera era muito festiva. Eu disse à minha mulher que ficaria sentado com ela e Peter. Mas um jovem assistente veio me procurar e disse que Fidel queria que nos sentássemos ao lado dele. Eu disse à minha mulher que teria de trocá-la por Fidel. Foi de lá que assisti ao jogo, e recebi muitas cartas do sul da Flórida, o que não foi muito agradável. Mas ficou claro para mim que o sujeito amava o beisebol".
Rojas: "Não assisti. Não tinha o menor interesse".

Anderson: "Estávamos lá para um fim. O beisebol era só um meio para ajudar a fomentar boas relações entre os dois países. Mas quando o jogo começou, só o beisebol interessava. A preocupação deixou de ser as ramificações políticas. A concentração estava em vencer o jogo".

Angelos: "Quando o hino dos Estados Unidos foi tocado, logo depois do hino cubano, Fidel Castro ouviu em pé. Não houve problema".

Valiente: "O estádio estava completamente lotado, e os torcedores estavam empolgados, pulando, gritando. No oitavo período, Linares acertou uma rebatida que permitiu que empatássemos por dois a dois. Fiquei pulando de alegria, muito entusiasmado. Infelizmente, saímos perdendo no 11º período".

Anderson: "Contreras se destacou. Ele era claramente um jogador pronto para a MLB".

BUFÊ DEPOIS DO JOGO

Selig: "Quando o jogo acabou, eles haviam preparado um ótimo bufê nos vestiários".

Anderson:" Alberto Juantorena estava lá. O único cara a vencer o ouro olímpico nos 400 e nos 800 metros. Se você conhecia qualquer coisa de atletismo, sabia quem era ele. Sempre curti muito o atletismo, e ainda curto, e por isso foi uma emoção conhecê-lo".

ADEUS CUBA

Selig: "Tivemos alguns problemas para sair de Cuba. Não faço ideia do que tenha sido, mas ficamos parados no aeroporto. Ninguém nos disse o que era, mas esperamos um pouco e eu estava ficando irrequieto, como costumo. Por fim pudemos partir".

CUBANOS NOS EUA

Em 3 de maio de 1999, a seleção cubana foi ao estádio Camden Yards, em Baltimore, para a revanche e venceu por 12 corridas a seis. Os cubanos haviam planejado passar a noite na cidade e partir na manhã seguinte, mas mobilizaram o pessoal antes da hora planejada, presumivelmente para impedir deserções. Um antigo jogador, que havia se tornado membro da equipe técnica cubana, desertou, e seis outros integrantes da delegação, nenhum dos quais jogador, perderam o apressado voo de volta. Mas voltaram para casa pouco depois.

Alderson: "Eles jogariam em Baltimore naquela noite e voariam de volta no dia seguinte. Mas ficaram tão preocupados com as deserções que decidiram partir na mesma noite, logo depois do jogo. Levaram pessoas direto do estádio, arrastaram pessoas de suas camas no hotel, e decolaram de madrugada. Até deixaram para trás sete ou oito pessoas que esqueceram no hotel. Uma delas desertou".

Valiente: "Eu queria muito ter ido a Baltimore, mas não consegui visto. Fiquei muito triste".

PRESENTE PARA FIDEL

Anderson: "Enviei a Castro um agasalho do Orioles, com o número 1 nas costas. Ele é um fã dedicado de beisebol, e falava do esporte como um profissional. Eu o contatei dessa maneira, e recebia mensagens do pessoal local dele em Washington, me convidando a visitar Cuba de novo".

"Isso foi em 1999. Fico grato por enfim poder repetir a visita, mas foram o que, 17 anos? Não achei que demoraria tanto".

Selig: "Gosto de imaginar que fui um precursor do que temos agora. Imaginei que fosse acontecer antes, mas não aconteceu. Era uma questão política muito delicada, obviamente. Mas estou feliz por estar acontecendo agora",

Alderson "Foi muito divertido. Foi empolgante. Eu estava diante da home plate, com o comissário e Castro ao lado dele. Eu estava com um boné do Baltimore Orioles, o que me incomodava um pouco porque trabalhei tanto tempo em Oakland".

Schmuck: "Estar lá e conhecer aquelas pessoas fez com que minha opinião sobre o embargo mudasse".

Valiente: "Tínhamos um bom entendimento de como a coisa poderia ser grande, mas não muita informação. Sentíamos que aquilo seria grande para o esporte cubano. Achávamos que teríamos a chance de conhecer os jogadores do outro lado. Não aconteceu, na verdade. Não tivemos muita interação".

Anderson: "O dono do time era muito avançado. Veja o que está acontecendo hoje. Ele estava 17 anos adiante de seu tempo".

Rojas: "O tempo cura tudo".

Angelos: "Obrigado por telefonar. Despertou lembranças agradáveis".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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