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Fla-Flu já mobilizou escritores como Nelson Rodrigues e Eduardo Galeano

Marcus Leoni/Folhapress
Folha da Noite de 13 de março de 1942 anuncia com destaque o resultado do Fla-Flu no Pacaembu
"Folha da Noite" de 13 de março de 1942 anuncia com destaque o resultado do Fla-Flu no Pacaembu

Um pernambucano deu nome ao clássico. Outro, irmão do primeiro, o eternizou em crônicas. Mário Filho e Nelson Rodrigues, respectivamente, nunca jogaram, marcaram gols, mas criaram muito da mística do Fla-Flu com suas letras.

Não foram os únicos craques, porém, a levar o jogo para a literatura. O paraibano José Lins do Rego descreveu o duelo carioca como um encontro de irmãos e o uruguaio Eduardo Galeano viu ali um ódio entre pai e filho rebelde.

Prova de que o clássico que será disputado neste domingo (20), às 16h no Pacaembu, em São Paulo, é tão carioca quanto universal. A ponto de virar sinônimo de rivalidade no país. Quem nunca ouviu o clichê de que o clima no Brasil hoje é de Fla-Flu?

A abreviação que virou marca foi obra do jornalista Mario Filho. Rubro-negro discreto, ele atuou como empresário, dono de jornal e ajudou a impulsionar o clássico. O estádio Maracanã acabou sendo batizado com o seu nome.

Enquanto o irmão mais velho empreendia, o caçula Nelson Rodrigues dava toques de exagero e genialidade ao jogo de futebol.

"O Fla-Flu não tem começo. O Fla-Flu não tem fim. O Fla-Flu começou quarenta minutos antes do nada. E aí então as multidões despertaram", definiu o jornalista, tricolor apaixonado e dramaturgo, autor de "Toda nudez será castigada", "O beijo no asfalto" e "Bonitinha, mas ordinária".

"Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro", escreveu Rodrigues.

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O dramaturgo Nelson Rodrigues
O dramaturgo Nelson Rodrigues

O parentesco entre Flamengo e Fluminense despertou interesse de Eduardo Galeano. Em "Futebol ao Sol e à Sombra", o autor de "As veias abertas na América Latina" dedicou um conto à origem do clássico.

"O Flamengo tinha nascido pouco antes para a vida futebolística. Brotara de uma fratura do clube Fluminense, que se dividiu em dois depois de muitas confusões e muitos ruídos de guerra e gritarias de parto. Depois o pai se arrependeu por não ter afogado no berço este filho respondão e gozador, mas já não podia fazer mais nada: o Fluminense havia gerado sua própria maldição, e a desgraça não tinha mais remédio.

Desde então, pai e filho, filho rebelde, pai abandonado, dedicam-se a se odiar. Cada clássico Fla-Flu é uma nova batalha desta guerra de nunca acabar. Os dois amam a mesma cidade, o Rio de Janeiro, preguiçosa, pecadora, que languidamente se deixa querer e se diverte oferecendo-se aos dois sem se dar a nenhum. Pai e filho jogam para a amante que joga com eles. Por ela se batem, e ela vai aos duelos vestida de festa".

Flamenguista fervoroso, José Lins do Rego viu mais semelhanças entre os rivais (aos menos entre seus torcedores) do que o uruguaio.

"Mais do que os homens lutam no gramado, há o espetáculo dos que trepam nas arquibancadas, dos que se apinham nas gerais, dos que se acomodam nas cadeiras de pistas. Nunca vi tanta semelhança entre tanta gente.

Todos os setenta mil espectadores que enchem um "Fla-Flu" se parecem, sofrem as mesmas reações, jogam os mesmos insultos, dão os mesmos gritos. Fico no meio de todos e os sinto como irmãos, nas vitórias e nas derrotas. As conversas que escuto, as brigas que assisto, os ditos, as graças que largam são como se saíssem de homens e mulheres da mesma classe. Neste sentido o futebol é como o carnaval, um agente de confraternidade. Liga os homens no amor e no ódio. Faz que eles gritem as mesmas palavras, e admirem e exaltem os mesmos heróis. Quando me jogo numa arquibancada, nos apertões de um estádio cheio, ponho-me a observar, a ver, a escutar. E vejo e escuto muita coisa viva, vejo e escuto o povo em plena criação".

INVASÃO DE UM LITERATO

Lins do Rego, Galeano, Mario Filho e Nelson Rodrigues tinham em comum a paixão pelo futebol. O destino fez com que outro romancista que desprezava o esporte fosse o responsável por um registro histórico e inusitado: a primeira invasão de campo em um Fla-Flu.

Um ano depois de publicar em livro o "Triste Fim de Policarpo Quaresma" (cinco anos antes, em 1911, a obra havia sido lançada em folhetins), Lima Barreto descreveu a cena em texto no jornal Gazeta de Notícias, em 1916.

"Foi suspenso por invasão de campo o match Fluminense - Flamengo. É profundamente desagradável para nós termos que registrar os fatos vergonhosos ontem à tarde, no ground da rua Guanabara, por ocasião da partida de campeonato entre os primeiros times do Fluminense F. Club e o C.R. do Flamengo.

O público, este nosso público desportivo que de quando em vez julga ser desairoso um dos quadros que combatem conformar-se com as decisões do juiz atuante, invadiu hostilmente o campo, quando os dois times se defrontavam aguardando que os assobios estridentes dos arruaceiros tivessem fim.

Mas não parou aí a saciedade dos assistentes: em massa, brandindo juncos, investiram para o Sr. Guilherme Witter, o juiz do macht, que, graças à intervenção enérgica e imediata dos diretores do Fluminense, nada sofreu"
O que originou a confusão foi a cobrança de um pênalti contra o Fluminense. Um flamenguista chutou a bola e a tocou para fora. O árbitro anulou o lance, já que os flamenguistas invadiram a área antes da cobrança. Na segunda tentativa, o gol foi marcado e os tricolores não deixaram a partida acabar.

O relato é descrito no livro "Lima Barreto versus Coelho Neto - Um Fla-Flu literário", de Mauro Rosso. Entre os invasores estaria o fundador da Academia Brasileira de Letras Coelho Neto, escritor paraibano e tricolor fanático.


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