Folha de S. Paulo


Judocas do Congo refugiados no Rio sonham em disputar a Olimpíada

Popole Misenga, 23, e Yolanda Bukasa, 28, desembarcaram no Rio em 2013 para representar a bandeira da República Democrática do Congo (RDC) no Mundial de judô. Três anos depois, estão cotados para disputar a Olimpíada sob a bandeira do COI (Comitê Olímpico Internacional) como refugiados.

Neste período, os dois chegaram a passar fome. Popole fez bicos descarregando caminhões. Yolanda dormiu na rua por alguns dias e trabalhou como servente. Mantiveram a forma como puderam até entrarem em abril no Instituto Reação, projeto social do judoca Flávio Canto.

Os dois foram os únicos congoleses a conseguir índice para participar do Mundial no Rio. Eles contam que os técnicos, assim que pisaram no país, os puseram em confinamento no quarto de hotel no centro da cidade. Confiscaram passaportes e tíquetes para alimentação.

Segundo o relato, a comissão ficou dois dias sem aparecer, período no qual não fizeram uma refeição completa. Yolanda foi a primeira a sucumbir à fome. Desistiu de competir e fugiu.

"Andei pelas ruas perguntando em francês [língua do seu país natal] a toda pessoa negra que encontrei se ela era africana", disse a judoca.

Passou uma noite na rua e outra num salão de beleza.

Popole, que permaneceu no hotel, conta que os técnicos apareceram "fedendo a bebida" no dia da competição. "Ela já deve estar morta", teria dito um deles.

O judoca perdeu sua luta após ser punido três vezes por falta de combatividade.

"Eles não me deram orientação. Estava com fome, preocupado com Yolanda. Não sabia o que fazer", disse.

Ela reapareceu no dia seguinte à luta na portaria do hotel. Convenceu o amigo a desertar. Foram levados por um angolano a Brás de Pina (zona norte), bairro que concentra imigrantes africanos.

Oficialmente, o Rio tem 749 refugiados congoleses. Outros 442 esperam aprovação.

FUGAS E CASTIGOS

Antigo Zaire, a RDC vive desde 1990 uma espiral de violência, resultado da disputa pelo poder da região rica em minas de ouro, estanho, tungstênio e, principalmente, coltan. O minério permitiu a criação de chips cada vez menores para a indústria de eletrônicos. Estima-se que cerca de 80% das reservas estejam no país.

O conflitou levou os dois a uma trajetória semelhante. Ambos fugiram de suas vilas após invasão de rebeldes. Nesses casos, adultos costumam ser mortos, meninos, viram soldados e meninas, escravas sexuais.

Em fuga, Popole chegou a passar oito dias na floresta.

Com a ajuda de tropas do governo, foram levados para um centro esportivo na capital, Kinshasa. Lá, as crianças eram divididas por aptidão.

Popole já lutava judô. Yolanda não sabe como acabou de quimono. Nenhum dos dois tem notícias da família.

"Uma amiga mandou pelo Facebook uma foto de mulher que parece ser a minha mãe. Mas não tenho como falar com ela", disse Yolanda.

Popole sonha em reencontrar um dos três irmãos.

No centro esportivo, não escaparam da severidade dos técnicos. Quando não conseguiam medalhas, sofriam castigos, como uma noite numa pequena cela gradeada.

MUITO COMPETITIVOS

Os dois vivem atualmente na Cidade Alta, violenta favela da zona norte.

Após três anos, Popole está mais adaptado. Mora há dois anos com Fabiana, 32, com quem tem uma filha. Yolanda ainda pula de casa em casa, vivendo de favor.

Popole sobreviveu com bicos descarregando caminhões. Já Yolanda chegou a trabalhar em uma fábrica têxtil, em Teresópolis, mas voltou em 2015 para o Rio.

Hoje, eles enfrentam duas horas de ônibus da Cidade Alta até Jacarepaguá (zona oeste) para chegar ao Instituto Reação. Ganham uma cesta básica por mês.

Além de recuperar as habilidades técnicas, os dois tiveram de se desfazer dos traumas do regime duro de punições no seu país de origem.

"Eles chegaram com o espírito de não poder perder. Competitivos até demais. Desacostumados ao fair play, lançavam os colegas para fora do tatame. Hoje, já estão integrados", relatou o técnico Geraldo Bernardes, 73.

O COI afirmou que "está em processo de identificação de atletas que têm potencial para se qualificar para os Jogos" e, assim, integrar a delegação de refugiados.

Popole está entre os três nomes promissores monitorados pelo COI. Yolanda está sob observação. Complementa seus treinos com exercícios na praça do bairro.

"Não posso lavar meu quimono porque fico dois dias sem treinar enquanto o equipamento seca. [...] Tento esquecer os problemas para focar na competição. A vida pode mudar em dois minutos", declarou a judoca.


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