Folha de S. Paulo


Judoca supera briga nas ruas e racismo para buscar medalha perto de casa

Leslye Davis/The New York Times
 Rafaela Silva tossing a fellow judoka. No sport has produced more Brazilian Olympic medalists than judo, and Silva, 23, is expected to join them. Credit Leslye Davis/The New York Times
Rafaela Silva (de branco) treina no Rio de Janeiro

Em uma rua estreita e íngreme a oito quilômetros do local onde acontecerá a competição olímpica de judô, em agosto, perto de uma pilha de tijolos à espera de uso na rua Agostinho Gama, 31 degraus de concreto contornam a parte externa de uma edificação, subindo e dobrando a quina até que se perdem de vista.

A escada não tem corrimão, e em alguns pontos a estrutura metálica que serve de apoio aos degraus está visível. Como tantas outras coisas nessa cidade dicotômica, longe das praias, subindo pelos morros até chegar às favelas, as coisas parecem estar ao mesmo tempo em construção e desabando.

Há um galo preso em uma gaiola no patamar superior da escadaria, e pela porta da casa em que Rafaela Silva cresceu e na qual sua família ainda vive, a judoca está visível, dividindo uma cadeira com a irmã Raquel.

Poucos atletas brasileiros serão acompanhados na Olimpíada do Rio com a mesma atenção que Rafaela Silva, campeã mundial de judô em 2013. O Brasil jamais conquistou mais de cinco medalhas de ouro em uma mesma Olimpíada, mas nenhum outro esporte –nem a vela, nem o vôlei de praia, nem a natação, nem o atletismo– produziu mais medalhistas do que o judô, para o Brasil.

E a expectativa é de que Rafaela Silva, 23, venha a conquistar uma dessas medalhas.

"A única medalha que ainda não tenho é uma medalha olímpica", ela disse. "Ter a chance de conquistá-la diante da minha família e dos meus amigos não tem preço".

Leslye Davis/The New York Times
 Rafaela Silva tossing a fellow judoka. No sport has produced more Brazilian Olympic medalists than judo, and Silva, 23, is expected to join them. Credit Leslye Davis/The New York Times
Rafaela Silva com a irmã na parte externa da casa delas, na Cidade de Deus

Há roupa recentemente lavada espalhada pelo piso da casa –principalmente judogis, os pesados quimonos de lona do judô– e as paredes são decoradas com premiações de judô. Raquel Silva, 26, também é campeã internacional de judô pelo Brasil, mas não conseguiu se qualificar para a equipe da Olimpíada.

Mais adiante, na mesma rua, Zenilda, a mãe de Rafaela e Raquel, estava na pequena loja em que vende botijões de gás e uma série de produtos cotidianos, por exemplo sabonete e arroz. As filhas dela começaram a desenvolver a musculatura carregando botijões de gás nas costas.

Ela subiu as escadas trazendo comida para os visitantes –dois bolinhos, pães e garrafas de refrigerante– e se desculpou por não ter preparado nada em casa. Luiz Carlos, seu marido, o pai das judocas, estava na rua, trabalhando em um caminhão de mudança, mas teria feito um bolo se a família soubesse que haveria visitas, ela disse.

Quando as meninas estavam no primeiro grau, a família deixou a Cidade de Deus, a favela que tem a maior fama de violenta do Rio de Janeiro, que fica nas proximidades, em busca de um lugar mais seguro. Aqui, a apenas 1,5 quilômetro de distância, a sensação de perigo persistente é menos intensa, principalmente porque a rua termina em um beco sem saída, no topo do morro. Ladrões, pistoleiros e traficantes de drogas só teriam uma rota de fuga, e por isso preferem agir em outros lugares.

Leslye Davis/The New York Times
 Rafaela Silva tossing a fellow judoka. No sport has produced more Brazilian Olympic medalists than judo, and Silva, 23, is expected to join them. Credit Leslye Davis/The New York Times
Rafaela Silva (à esq.) e a irmã Raquel na sala de casa, na Cidade de Deus

As meninas continuam a encontrar problemas, alguns criados por elas mesmas.

"Aqui, se você não bater em alguém, termina apanhando", disse Raquel. "É sobrevivência".

Raquel certa vez foi expulsa da aula por brigar na escola. Rafaela brigava frequentemente com os meninos do bairro, na rua. A diferença de três anos em suas idades ocasionalmente as levou a estudar em escolas diferentes.

"Nós nos encontrávamos para voltar juntas para casa, e quando eu dobrava a esquina a Rafaela já estava metida em uma briga", disse Raquel.

Os pais ajudaram a orientar as meninas para que elas escapassem desse tipo de tentação. Um dos caminhos foi uma academia de judô próxima, que lhes oferecia estrutura e diversão.

"O judô tem regras", disse Raquel Silva. Rafaela expressou sua concordância com um aceno de cabeça. "A rua não".

Na parte interna do bíceps de Rafaela Silva, escondida sob o quimono durante as disputas, há uma tatuagem dos anéis olímpicos e uma frase em português: "Só Deus sabe o quanto sofri e o que tive de fazer para chegar aqui".

Leslye Davis/The New York Times
 Rafaela Silva tossing a fellow judoka. No sport has produced more Brazilian Olympic medalists than judo, and Silva, 23, is expected to join them. Credit Leslye Davis/The New York Times
O treinador Geraldo Bernardes, um dos responsáveis pela carreira de Rafaela Silva

TREINADOR VIU POTENCIAL

Um pouco mais cedo, a alguns quilômetros de distância, Geraldo Bernardes, treinador de Silva há muito tempo, descreveu a jornada de sua pupila das favelas à Olimpíada. Bernardes, um homem grisalho e de olhos azuis, foi treinador da equipe olímpica de judô brasileira. Um de seus antigos comandados é Flávio Canto, que participou de duas Olimpíadas, conquistou o bronze em Atenas em 2004 e se tornou uma celebridade no Brasil.

Em 2003, Canto criou o Instituto Reação, uma escola de judô para pessoas de todas as idades e condições, na favela da Rocinha, a maior do Rio de Janeiro. Ele uniu forças com Bernardes, que já tinha escolas de judô, entre as quais uma na Cidade de Deus. Os dois expandiram o Instituto Reação até transformá-lo em um programa com cinco escolas e 1.250 atletas, entre os quais 130 participantes do programa "olímpico", comandado por Bernardes. (Entre os beneficiários está a norte-americana Ronda Rousey, ganhadora do bronze na Olimpíada de 2008 e conhecida por sua posição dominante nas artes marciais mistas; Rousey recentemente doou dinheiro ao instituto.)

Mais de uma década atrás, as jovens e combativas irmãs Silva estavam entre os pupilos de Bernardes, e ele imediatamente viu potencial nas duas.

"Rafaela sempre foi muito agressiva, mas de uma maneira que eu poderia orientar de forma a beneficiá-la no esporte", ele disse na Universidade do Estácio, para onde recentemente transferiu sua escola, agora abrigada em um grande pavilhão de paredes abertas, com teto metálico e piso de tatame. "Ela tinha muita energia e muita agressividade. Percebi que aquela energia poderia ser dirigida ao esporte".

Ele acreditava que as duas irmãs poderiam chegar à equipe nacional de judô ainda na adolescência. E elas o fizeram. Mas Raquel engravidou aos 15 anos, o que impediu que ela treinasse por dois importantes anos. (Sua filha, que tem 10 anos, estava acomodada no sofá da família, em nossa recente visita.) Rafaela terminou por se equiparar à irmã e ultrapassá-la.

"Ela poderia ter sido melhor do que Rafaela", disse Bernardes. "Mas também passou por uma cirurgia de joelho que realmente atrasou seu progresso. Rafaela a superou".

Leslye Davis/The New York Times
 Rafaela Silva tossing a fellow judoka. No sport has produced more Brazilian Olympic medalists than judo, and Silva, 23, is expected to join them. Credit Leslye Davis/The New York Times
Ginásio na Universidade do Estácio, onde Bernardes trabalha atualmente

CARACTERÍSTICAS VITAIS

Bernardes disse que Rafaela Silva, que compete na categoria 57 quilos, conta com as características vitais do judô: coordenação, equilíbrio, envergadura longa e capacidade de aprender rapidamente. Ela também é canhota, o que é uma vantagem no judô como poder ser em outros esportes de combate.

E ela também tinha fome, ele diz, até mesmo no sentido literal. Rafaela sentiu enjoo em sua primeira sessão de treinamento com ele, porque não havia tomado café da manhã.

"O judô requer muito sacrifício do atleta", disse Bernardes. "Mas em uma comunidade pobre, eles estão acostumados a sacrifícios. Veem muita violência, podem não ter comida suficiente. Eu percebi quando ela era bem jovem que Rafaela era agressiva. E, por conta do lugar de onde veio, ela queria algo melhor".

Bernardes disse às meninas que não permitiria que elas passassem pelos exames para mudar de faixa se elas se envolvessem em problemas na escola ou nas ruas –o que foi incentivo suficiente para que escapassem da maioria dos problemas. Ele ajudou a pagar pelo treinamento das meninas, o que incluiu viagens a torneios que as finanças da família delas não poderiam bancar.

"No começo, eu lutava judô porque gostava", disse Raquel Silva. "Mas Geraldo nos mostrou outro mundo. Era um trabalho. Uma profissão. Isso plantou uma semente".

Rafaela não encarava o esporte com a mesma seriedade. Ela continua não gostando de treinar. Mas conquistou sua faixa preta aos 16 anos e se tornou campeã mundial na categoria júnior.

"Tudo mudou em 2008, no Campeonato Mundial Júnior realizado na Tailândia", ela disse. "Foi quando percebi que aquilo era o que eu queria fazer. Em toda minha vida antes do campeonato, as lutas eram fáceis. Duravam 10 segundos. E eu podia passar o resto do meu tempo brincando. Mas depois dos campeonatos mundiais percebi que as coisas podiam ser diferentes".

Aos 19 anos, ela conquistou a prata no campeonato mundial. Aos 21, foi a vez do ouro. Mas o torneio que ainda a perturba aconteceu entre os dois mundiais: a Olimpíada de Londres, em 2012.

Então, como agora, ela era vista como séria candidata a medalha. Mas foi desclassificada em uma luta preliminar por uma segurada ilegal, uma punição técnica relacionada a uma mudança recente nas regras.

"A oponente era uma garota da Hungria que eu tinha derrotado com facilidade antes", disse Silva. "Não sei se pensei que o melhor seria acabar com a luta rapidamente, mas o juiz primeiro me deu um ponto e depois mudou sua decisão e me desclassificou".

A derrota ainda incomoda.

"Treinei quatro anos para a Olimpíada, e em um minuto ela acabou", disse Rafaela.

O que aconteceu imediatamente depois foi pior. Alguns brasileiros zombaram dela na mídia social, usando epítetos raciais. Um deles escreveu que "lugar de macaco é na jaula". Silva não conseguiu resistir e respondeu, e o fez usando insultos ferozes. A guerra no Twitter atraiu tamanha atenção que o Comitê Olímpico Brasileiro interferiu para fazer advertências quanto aos ataques, e dirigentes do judô convenceram Silva a deixar de responder aos seus críticos preconceituosos.

Passados quatro anos, ela não se arrepende de suas ações.

"Nem um pouco", disse.

Leslye Davis/The New York Times
 Rafaela Silva tossing a fellow judoka. No sport has produced more Brazilian Olympic medalists than judo, and Silva, 23, is expected to join them. Credit Leslye Davis/The New York Times
Rafaela Silva mostra o braço tatuado com os anéis olímpicos

CORAÇÃO PARTIDO EM LONDRES

O episódio quase a faz desistir. Ela havia superado muitos obstáculos para se tornar uma das melhores judocas do mundo, mas o momento em que ela chegou mais perto de abandonar o esporte foi depois dos Jogos Olímpicos de Londres, disse Bernardes.

"Ela jamais havia indicado que poderia desistir do esporte até 2012, quando foi desclassificada da Olimpíada", ele disse. "Houve muitos comentários racistas na mídia social. Comentários cruéis. E ela respondeu a alguns deles, brigando na mídia social, e ficou realmente zangada. Depois, ficou com medo de sair à rua e ser insultada. Tive medo de que ela desistisse do esporte".

Silva se afastou do judô por alguns meses. Sua família ficou preocupada com ela.

"Rafaela ficou deprimida", disse Raquel Silva. "Ela assistia televisão o dia inteiro, e chorava sozinha na frente do televisor. Nossa mãe cozinhava seus pratos favoritos para animá-la, mas sem resultado".

Bernardes queria que Rafaela Silva fosse ao instituto, para retomar os treinamentos e redespertar seu entusiasmo. Quando ela por fim foi, assistiu por acaso a uma apresentação de um psicólogo do esporte. Intrigada e inspirada, Silva retomou seu treinamento físico e começou também a realizar treinamentos mentais. No segundo trimestre do ano seguinte, ela conseguiu retomar o foco e canalizar sua frustração, e se tornou campeã mundial.

E agora uma nova Olimpíada está chegando, desta vez, para Rafaela Silva, a apenas alguns quilômetros de sua casa. Bernardes a está treinando no instituto. Sua irmã, que luta uma categoria de peso abaixo, serve como oponente nos treinos. Os pais dela esperam conseguir ingressos para assistir às suas lutas. O país inteiro vai assistir, à espera de um resultado que mereça comemoração.

E o bairro inteiro torcerá por ela, para ver se uma jovem das precárias e caóticas ruas dos morros será capaz de construir uma das mais improváveis histórias de sucesso olímpico e conquistar medalha para a equipe da casa.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: