Folha de S. Paulo


Site misterioso quer expor transações do mundo do futebol

Kay int Veen/Efe
35100283. Rotterdam (Netherlands), 22/11/2015.- Keeper Joel Drommel of FC Twente is defeated during the Dutch Eredivisie soccer match between Feyenoord and FC Twente in Rotterdam, The Netherlands on 22 November 2015. (Países Bajos; Holanda) EFE/EPA/Kay int Veen ORG XMIT: 35100283
O goleiro do Twente, Joel Drommel, leva um gol na partida contra o Feyenoord

O assessor de imprensa do FC Twente, um clube de futebol profissional da Holanda, recebeu um telefonema certa manhã do mês passado, quando estava dirigindo a caminho do trabalho. Um colega havia acabado de ver um post estranho no Twitter.

Mas não se tratava de uma crise de mídia social comum para uma equipe esportiva. Em lugar disso, o FC Twente, da cidade de Enschede, se havia tornado o mais recente alvo de um grupo que vem recentemente causando incômodos ao futebol profissional de todo o planeta, recorrendo a táticas semelhantes às do caso Wikileaks. O grupo divulgou documento privados relacionados a clubes de futebol de Portugal, Inglaterra, Espanha, França, Luxemburgo, Mônaco e outros países.

No caso do Twente, o site conhecido como Football Leaks publicou documentos que expunham acordos financeiros entre o clube e uma agência com diversos interesses futebolísticos, entre os quais uma controversa divisão que investe em jogadores. Os documentos, que não eram para exposição pública, parecem retratar um relacionamento no mínimo insalubre e, na pior das hipóteses, configurando violação dos regulamentos nacionais e internacionais do futebol.

"A primeira coisa que pensei foi um palavrão", disse Richard Peters, o assessor de imprensa. "Nós –tanto os membros da diretoria quanto os funcionários do clube– ficamos desagradavelmente surpresos".

"Até aquele momento, nem sabíamos que aquele site existia", ele acrescentou.

O FC Twente tem muita companhia. O Football Leaks não existia, até setembro, mas em seu estágio nascente teve efeito inegável sobre o mundo do futebol, divulgando inúmeros documentos que deveriam ter sido mantidos em sigilo, tudo isso com a intenção de expor o mundo muitas vezes nebuloso das finanças futebolísticas.

O Football Leaks está envolto em mistério, e nenhum dos envolvidos com o site ofereceu detalhes significativos sobre as identidades dos organizadores. Ao longo de uma extensa troca de e-mails com o "New York Times", no entanto, alguém que se identificou como líder do site discutiu seus antecedentes, motivações e intenções.

Os organizadores do site operam de Portugal, de acordo com a pessoa em questão, que pediu para ser citado apenas como John. Mas, disse ele, empregam servidores e nomes de domínio russos a fim de armazenar informações "porque é sabido publicamente que as autoridades da Rússia raramente cooperam com as autoridades ocidentais".

O objetivo inicial do site, disse John, era expor as impropriedades praticadas pelos clubes portugueses, para os quais a prática de recorrer a terceiros como investidores vem sendo uma maneira comum para que os times adquiram jogadores de alto preço quando não dispõem dos fundos necessários.

Essa prática, conhecida em inglês pela sigla TPO (third-party ownership), era bastante comum e só foi proibida recentemente pela Fifa, a organização que comanda o futebol mundial. O objetivo dos investidores envolvidos era lucrar quando da revenda de um jogador a uma nova equipe.

Os críticos da prática acreditam que ela tenha permitido que grupos de investimento como a Doyen, a agência vinculada ao FC Twente, explorem equipes que enfrentam dificuldades financeiras –como o Twente.

O clube não conquistou muito sucesso em seus 50 anos de história. Mas o investimento de um torcedor endinheirado, Joop Munsterman, transformou o Twente em campeão. Depois de contratar Steve McClaren, antigo técnico da seleção inglesa de futebol, para comandar o time, o Twente conquistou seu primeiro título holandês em 2010, e com isso obteve acesso às recompensas financeiras da Champions League.

Mas o Twente se distendeu demais financeiramente. Quando foi derrotado pelo Ajax na disputa pelo título holandês, na última rodada da temporada seguinte, as dívidas começaram a se acumular.

"Para jogar em alto nível, é preciso pagar salários mais altos", disse Youri Mulder, antigo jogador da seleção holandesa que treinou o Twente até a temporada passada. "Eles não conseguiram manter as aparências por muito tempo".

No caso do Twente e Doyen, um dos documentos expostos pelo Football Leaks parece mostrar um acordo sob o qual a Doyen emprestou US$ 5,5 milhões ao clube em troca de uma porcentagem dos direitos econômicos de cinco jogadores, entre os quais o meio-campista Dusan Tadic. Tadic foi mais tarde vendido ao Southampton, da Premier League inglesa, por valor reportado de US$ 16,5 milhões.

No momento em que os contratos foram assinados, a TPO não era ilegal. ("A imprensa estava ciente de que havíamos vendido parte dos direitos sobre jogadores, e os jogadores estavam informados", disse Mulder). Mas um segundo documento revelou que o Twente tinha obrigação de ressarcir a Doyen, o investidor externo, mesmo que rejeitasse uma oferta pela aquisição de um dos cinco jogadores.

Em outras palavras, o acordo colocava o Twente na posição de ter incentivo para vender alguns de seus principais jogadores a fim de propiciar lucro a investidores externos mesmo que isso não servisse aos interesses do clube.

Mulder negou que ele ou qualquer outra pessoa da comissão técnica do Twente estivesse informado do contrato com a Doyen, mas John, o membro do Football Leaks, escreveu que esse tipo de situação era exatamente o que o site está tentando expor.

"Esse tipo de sigilo sobre contratos e de cláusulas secretas está matando esse esporte", disse John.

Os organizadores do Football Leaks afirmam que são apenas torcedores de futebol preocupados, fazendo o papel de fiscalizar o esporte, e objetam ao rótulo de hackers. Por exemplo, eles não parecem ter as mesmas preocupações de grupos de Internet semelhantes quanto a proteger seus ativos online, e usam ferramentas comuns de publicação de blogs para postar seus documentos –muitos dos quais terminaram removidos por provedores– em lugar de apelarem a sites protegidos por criptografia. Embora "as pessoas possam pensar que somos hackers, somos apenas usuários comuns de computadores", afirmou John em e-mail ao "New York Times".

A Doyen, em resposta pública depois da divulgação dos contratos com o Twente, disse não contestar a autenticidade dos documentos, embora tenha afirmado que alguns foram manipulados. Também acusou o Football Leaks de obtê-los por meio de um "ataque cibernético" aos servidores da empresa, e de tentar posteriormente chantagear alguns de seus executivos.

Francisco Empis, porta-voz da Doyen, declarou em entrevista na terça-feira que a companhia considerava o Football Leaks como trapaça ilegal. "É assunto da polícia, agora", ele disse.

O Football Leaks rejeitou as acusações da Doyen e rebateu afirmando que a empresa - cujas transações de TPO foram alvo de diversos posts de denúncia pelo grupo –estava pressionando as autoridades portuguesas a impedi-lo de operar. Em dois meses, de acordo com autores ligados ao Football Leaks, dois sites que usavam a plataforma LiveJournal foram forçados a fechar, e mesmo o provedor russo de hospedagem do grupo, o Yandex, fechou a conta de armazenagem em nuvem do Football Leaks depois de revelar queixas da Doyen aos autores.

O site está em busca de uma nova plataforma, mais segura, para postar seu material. Ele mantém uma página no Facebook na qual os autores ocasionalmente trocam mensagens brincalhonas com comentaristas. "A luta vem sendo difícil", eles afirmaram em um e-mail ao "New York Times". "Mas não vamos parar".

Na semana passada, o jornal espanhol "AS" citou uma fonte da polícia portuguesa que descreveu o Football Leaks como "organização criminosa internacional"– descrição que os autores ligados ao Football Leaks trataram com zombaria. Pedro do Carmo, dirigente da polícia portuguesa, afirmou em e-mail que não podia divulgar qualquer informação sobre as investigações continuadas.

Um importante clube português, o Sporting Lisboa, teria aparentemente apresentado queixa à polícia pouco depois que o Football Leaks publicou documentos incriminadores sobre pagamentos realizados pelo clube, no final de setembro, mas o Sporting não ofereceu detalhes sobre sua ação judicial.

Em outubro, Bruno de Carvalho, presidente do Sporting, denunciou o Football Leaks em entrevista ao jornal português "Expresso", afirmando que "a polícia precisa verificar" as fontes e a veracidade do conteúdo do site.
Ele também sugeriu que o Football Leaks estava agindo a mando do arquirrival do Sporting, o Benfica, descrevendo como "tremenda coincidência" que o site tenha publicado apenas informações que ele define como irrelevantes sobre as transações de negócios do Benfica.

Os autores do Football Leaks descartam as acusações de parcialidade ou de que tenham qualquer outra agenda que não a de expor uma falácia, nas palavras deles, já que "o futebol é o maior esporte do planeta mas ao mesmo tempo o mais opaco".

Até agora, pelo menos, o trabalho deles vêm fazendo efeito, e no caso do FC Twente a exposição inesperada trouxe consequências significativas. Já perto das últimas posições da tabela no campeonato da primeira divisão holandesa, o clube sofreu novo abalo quando seu presidente, Aldo van der Laan, renunciou, depois da publicação dos posts do Football Leaks. Van der Laan se recusou a comentar.

Uma comissão judicial de inquérito independente foi apontada pela federação holandesa a fim de decidir se a Doyen exerceu influência indevida sobre o FC Twente. Na terça-feira, o grupo decidiu que o clube havia "deliberadamente iludido" a comissão quanto ao seu relacionamento com a Doyen. O Twente foi excluído de todas as competições europeias por três temporadas e recebeu uma multa de US$ 49.405. A comissão também ameaçou revogar a licença para que o Twente jogue no ano que vem a menos que auxilie sem reservas uma investigação independente sobre a maneira pela qual o clube vinha sendo administrado.

Enquanto isso, no final de semana passado o FC Twente continuava sua luta contra o rebaixamento, conquistando sua terceira vitória na temporada, por dois a um, contra o De Graafschap, último colocado do campeonato holandês. O clube continua na antepenúltima posição do campeonato.

"Temo pelo futuro do clube", disse Mulder, que ganhou fama jogando como atacante pelo Twente, no começo dos anos 90. "É trágico", ele acrescentou. "Espero que consigam sobreviver".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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