Folha de S. Paulo


Como o império de Blatter na Fifa caiu

A "Casa da Fifa" é uma edificação oblonga em uma colina sobre Zurique. Envolta por uma malha protetora de material cinzento, ela parece impenetrável e por décadas era exatamente isso que a instituição mais alta do futebol preferia. A Fifa sempre foi um clube altamente sigiloso e que só prestava contas a si mesma.

Mas em maio seu mundo desabou. Investigações criminais por corrupção, na Suíça e nos Estados Unidos, deflagraram uma batalha interna –ainda em curso– sobre como a organização é comandada.

A briga, da qual Joseph Blatter, o presidente da Fifa, e seus aliados foram em geral alijados, deixou o controle da organização nas mãos de seu diretor jurídico e de um escritório de advocacia norte-americano contratado para restaurar a reputação da Fifa e garantir sua sobrevivência –enquanto continuam a ser descobertos indícios de acobertamento de corrupção no topo da organização.

A existência da Fifa está sob ameaça. Seu faturamento foi prejudicado pelo escândalo, já que novos parceiros evitam a organização, e o futuro necessariamente incluirá cortes de custos. Mas dentro da organização, muitos daqueles que esperam substituir Blatter quando a Fifa eleger um novo presidente em fevereiro continuam a viver em negação sobre a necessidade de mudança, de acordo com pessoas próximas à organização.

"Não é uma conclusão inevitável que a companhia [Fifa] sobreviva", diz uma fonte importante que conhece bem a organização. "Isso ainda não está decidido".

O relato abaixo sobre os últimos meses no quartel-general do futebol mundial se baseia em entrevistas com dirigentes da Fifa e outras pessoas que conhecem em primeira mão os dias finais do reino de Blatter. A maior parte dos entrevistados pediu que seus nomes não fossem revelados dada a delicadeza da situação.

ACORDANDO CEDO

Blatter estava tomando café da manhã quando foi informado de que a polícia suíça, agindo a pedido do Departamento da Justiça norte-americano, havia invadido o hotel Baur au Lac e detido sete importantes dirigentes da Fifa. Eram 6h da quarta-feira, 27 de maio, e Marco Villiger, o diretor jurídico da Fifa, ligou para Thomas Werlen pedindo ajuda.

Por seis anos, Werlen foi diretor jurídico do grupo farmacêutico suíço Novartis quando este estava enfrentando acusações do Departamento da Justiça norte-americano de que comerciava diversos medicamentos ilegalmente e pagava médicos para que os receitassem.

A companhia terminou aceitando um acordo extrajudicial sob o qual pagou US$ 422,5 milhões para encerrar as queixas civis e criminais contra ela, em 2010. Dois anos mais tarde, Werlen se tornou sócio no escritório suíço do Quinn Emanuel, um escritório de advocacia norte-americano que começou a assessorar a Fifa em 2014.

Villiger, que trabalhava na Fifa há nove anos, também contatou Bill Burck, que foi conselheiro especial do presidente George W. Bush e depois se tornou sócio do Quinn Emanuel. Hoje, Burck, também antigo secretário assistente de Justiça do Estado de Nova York, funciona como um dos principais contatos entre a Fifa e a Justiça dos Estados Unidos.

Depois que a polícia suíça revistou o hotel, investigadores da promotoria pública da Suíça foram à sede da Fifa para iniciar seu inquérito.

A reação imediata foi de confusão sobre como responder à crise. Importantes dirigentes da Fifa, indignados quanto ao momento das ações –apenas dois dias antes das eleições para a presidência da organização–, acusaram os Estados Unidos de exceder sua autoridade.

"Houve muitas respostas diferentes na Fifa", diz uma pessoa que passou bastante tempo na sede da organização nos últimos meses. "No nível dos funcionários, havia medo, choque e confusão, mas também um sentimento de 'o que podemos fazer para melhorar as coisas?' No nível político, foi muito diferente. Houve desafio e uma falta de apreciação quanto à severidade da situação", ele diz.

Mesmo agora, diversos dirigentes da Fifa ainda pensam que "tudo isso desaparecerá", disse uma pessoa que conhece bem o Comitê Executivo de 25 membros que toma todas as principais decisões na organização. "A maior parte do comitê executivo vive em negação. Só um pequeno grupo compreende", ele diz.

Mesmo assim, a pressão bastou para que Blatter revertesse sua posição. Dias depois de ser reeleito para um quinto mandato como presidente a despeito dos apelos por sua renúncia, Blatter anunciou que deixaria o posto depois de uma nova eleição.

Diversas pessoas dizem que essa reviravolta aconteceu devido a alertas de que ele mesmo se tornaria alvo dos investigadores norte-americanos caso permanecesse. "Isso não é verdade, de modo algum", disse Blatter em recente entrevista ao "Financial Times". "Eu acatei conselhos pessoais, e não conselhos jurídicos, de pessoas em quem confio".

Entre as pessoas com quem ele conversou estava Villiger, que explicou ao presidente a posição legal da Fifa. Depois disso, diz Blatter, ele optou por renunciar "para proteger a Fifa".

Os indiciamentos nos Estados Unidos podem destruir a Fifa. O Departamento da Justiça –que iniciou suas investigações há pelo menos quatro anos– está processando dirigentes da Fifa sob a Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas pelo Crime Organizado (RICO), criada para combater organizações mafiosas que tivessem assumido o controle de entidades de outro modo legítimas.

O departamento, no momento, está recolhendo mais provas e alguns dos dirigentes da Fifa detidos concordaram em cooperar com as investigações. Novas detenções são aguardadas nos próximos seis meses.

Se o Departamento da Justiça acusar a Fifa de crime organizado, os patrocinadores e parceiros da organização na mídia teriam de romper imediatamente suas ligações com ela e a instituição que governa o futebol mundial –e faturou US$ 5,7 bilhões nos quatro anos até a Copa do Mundo de 2014– entraria em colapso.

Mas os indiciamentos deixam algum espaço para acomodação. A Fifa também é citada como "vítima" dos supostos crimes, tanto nos Estados Unidos quanto na Suíça. Nos Estados Unidos, as autoridades até agora enviaram à Fifa quatro "notificações de vítima" –notificações judiciais automáticas dos tribunais às partes lesadas envolvidas em processos judiciais.

"A entidade pode ter sido organizada para cometer crimes ou pode ser uma organização usada por indivíduos para cometer crimes", diz uma pessoa que conhece bem os problemas legais da Fifa.

VÍTIMA

Desde a dissolução do grupo de auditoria Arthur Andersen, depois do escândalo da Enron, os promotores públicos norte-americanos vêm relutando em forçar o fechamento de companhias, a fim de não eliminar o ganha-pão de funcionários inocentes, ainda que os líderes da organização sejam culpados.

Mas os promotores federais norte-americanos encarregados de investigar a Fifa, que operam de Brooklyn, não são especialistas em crimes de colarinho branco; sua área é o combate ao crime organizado.

"Eles provavelmente teriam acusado a Fifa como empreitada mafiosa e fechado suas portas. Mas alguém no topo do Departamento da Justiça deve ter reconhecido que isso causaria um problema. Ver a entidade como vítima é a solução provisória", diz a fonte.

A chave para manter esse "status de vítima", de acordo com a pessoa próxima à Fifa, é que ela aja como vítima. "O que uma vítima faz? Uma pessoa que seja vítima deseja descobrir o que aconteceu, e que justiça seja feita. Quem não é uma verdadeira vítima prefere olhar para o outro lado". Vista de fora, a Fifa não parecia vítima; seus dirigentes preferiam negar qualquer delito.

O departamento de comunicações da instituição entrou em colapso. A Quinn Emanuel contratou a Teneo, uma companhia de comunicações estratégicas que assessorou a BHP Billiton, Novartis e UBS em suas batalhas contra os promotores públicos norte-americanos, a fim de trabalhar com o escritório no caso da Fifa. A instrução era fazer com que a organização parecesse transparente, menos política e mais cooperativa, disse uma pessoa próxima à organização.

Mas nem todo mundo aceitou essa estratégia. Em 20 de julho, o Quinn Emanuel fez uma apresentação ao comitê executivo delineando de que maneira a Fifa precisava agir para se apresentar como vítima.

"Houve compreensão. Houve acenos de assentimento", diz uma pessoa que participou da reunião. "E a reação de Blatter foi: 'não temos com o que nos preocupar, somos vítimas'". Duas outras pessoas presentes dizem que sua impressão não foi a de que Blatter estivesse tentando desconsiderar o conselho dos advogados.

A tensão cresceu no terceiro trimestre, com a direção da Fifa se alinhando em oposição ao Quinn Emanuel –que tinha uma equipe de 10 advogados concentrada no caso– e ao departamento jurídico da entidade.

Para frustração de muitos, Blatter continuou a condenar publicamente a investigação dos Estados Unidos afirmando que ela tinha motivações políticas.

"Todo mundo pediu a Blatter, repetida e respeitosamente, que ele não fizesse comentários públicos denegrindo a investigação. Pediram-lhe que se concentrasse no futebol", diz um dos assessores do presidente.

Até Lorenz Erni, o advogado suíço de Blatter, pediu que ele parasse de falar. Mas outros o aconselharam a espalhar sua mensagem. Um integrante de seu círculo mais próximo de assessores diz que os bancos suíços foram aconselhados a "calar a boca" quando estavam em disputa com as autoridades norte-americanas, mas isso não os ajudou muito, no fim. "Minha opinião era a de que ele devia contar sua história".

A pressão continuou a crescer. Jérôme Valcke, secretário geral da Fifa e possível candidato à presidência da organização, foi suspenso depois de ser implicado em um escândalo quanto a ingressos para a Copa do Mundo.

Em agosto, os patrocinadores da Fifa foram a Zurique para conversações. "Disseram apoiar os planos, mas queriam saber por que ninguém estava controlando o presidente", diz um participante da reunião. "E queriam saber quanto tempo duraria a investigação". Foram informados de que os problemas da Fifa com o Departamento da Justiça norte-americano durariam pelo menos mais um ano. As autoridades suíças acreditam que suas investigações devam levar cinco a seis anos.

Em outubro, Coca-Cola, McDonald's, AB InBev e Visa pediram que Blatter renunciasse de imediato ao posto. Ele foi forçado a deixar o cargo seis dias mais tarde, pondo fim a 17 anos de reinado, quando as autoridades suíças informaram o estar investigando por um pagamento de dois milhões de francos suíços (US$ 2 milhões) a Michel Platini, o comandante do futebol europeu.

"Ninguém preparou armadilhas, mas quando a situação surgiu, garantiram que a coisa certa fosse feita", diz uma pessoa próxima à Fifa. Os amigos de Blatter culpam o Quinn Emanuel e a Teneo. "Eles controlam a Fifa. Nenhuma decisão é tomada sem que aprovem", diz um deles. Blatter é ainda mais brusco: "O Quinn Emanuel manda na Fifa", ele diz.

O escritório dele, uma suíte de 140 metros quadrados, foi esvaziado de seus pertences, fotos e suvenires do mundo inteiro. Na quarta-feira, seu apelo contra a sua suspensão de todas as atividades relacionadas ao futebol foi rejeitado. Desde que deixou a organização, ele passou por uma longa internação no hospital depois de "sofrer um colapso total de tudo, exceto seu coração e cérebro", disse um porta-voz.

NOVAS INVESTIGAÇÕES

Em julho, o Quinn Emanuel criou uma sala segura fora da sede da organização para conduzir sua investigação sobre a Fifa. Depois de vasculhar milhares de e-mails, diversos outros exemplos de possível corrupção –e possíveis esforços para acobertá-los– foram descobertos e encaminhados às autoridades suíças, de acordo com pessoas conhecedoras da investigação.

"As provas abriram novos canais de investigação", diz uma pessoa próxima à Fifa. "Muitas delas haviam passado por esforços ativos de acobertamento". Nos últimos quatro anos, não há exemplos de coisas escancaradas e notórias, mas "de dirigentes ocultando suas atividades".

Mas o Departamento da Justiça se irritou com a aparente indolência das autoridades suíças. "Eles desejam ver resultados", acrescenta a mesma fonte. O código criminal suíço impede que autoridades estrangeiras operem na Suíça sem consentimento, e o caso da Fifa enfatizou o confronto entre as culturas jurídicas dos dois lados do Atlântico.

Folco Galli, porta-voz do Ministério da Justiça suíço, diz que existe um tratado com os Estados Unidos que prevê "assistência legal", mas admite que "ainda não fornecemos nenhuma das provas que as autoridades norte-americanas solicitaram. Vai demorar".

A administração da Fifa, comandada pelo secretário geral interino Markus Kattner, planeja um futuro menos róseo. O Comitê Executivo se reuniu no mês passado, e Kattner fez uma apresentação sobre as receitas e os custos da Fifa e a maneira pela qual a crise estava afetando a organização.

"O deficit deste ano significa que os custos terão de ser podados", diz uma pessoa que participou da apresentação. "Ninguém assinou patrocinadores novos".

A reforma mais importante, a de privar o comitê de seus poderes executivos e atribuir o controle operacional da Fifa ao seu presidente-executivo, também vem ganhando apoio. "As reformas serão adotadas mesmo que os países [membros] não as queiram, de outra forma isso lhes doerá no bolso. Eles precisam das reformas para obter as receitas que desejam, porque de outra forma os patrocinadores sairão", ele acrescenta.

Outras pessoas próximas à Fifa estão estudando a criação de uma estrutura ao estilo "banco de passivos", sob a qual as operações históricas da Fifa seriam deixadas para trás e cooperariam com o Departamento da Justiça, e a organização formaria uma nova entidade para cuidar do futuro.

"O que se quer é que a organização encarregada do futebol mundial sobreviva e continue sem que sofra um estado de crise constante", disse uma pessoa familiarizada com as conversações.

O que fica claro é que a sede da Fifa, baixa, oblonga e cinzenta, terá de se tornar mais transparente para sobreviver, quer seus líderes assim queiram, quer não.

Cronologia

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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