Folha de S. Paulo


É ingênuo pensar que o Brasil não terá doping, diz chefe de comissão

Denis Balibouse - 9.nov.2015/Reuters
Richard W. Pound, World Anti-Doping Agency (WADA) Founding President and former IOC Vice President speaks during a news conference on the WADA Independent Commission report on findings of investigation into allegations of widespread doping in sport in Geneva, Switzerland November 9, 2015. REUTERS/Denis Balibouse ORG XMIT: RSP22
Richard Pound durante entrevista em que apresentou o relatório sobre dopagem na Rússia

Desde que a Agência Mundial Antidoping (Wada, em inglês) foi criada, em 1999, nenhuma denúncia de doping teve o impacto da revelação na semana passada de um esquema de fraudes no atletismo da Rússia.

Um nome central nessa investigação é o canadense Richard "Dick" Pound, 73, que presidiu a comissão instituída pela Wada para apurar essas irregularidades.

A partir do relatório elaborado pelo grupo sob o comando dele, a Iaaf (Associação Internacional das Federações de Atletismo) tomou a decisão mais dura de sua história, a suspensão provisória da Rússia das competições internacionais do esporte.

Influente cartola no COI (Comitê Olímpico Internacional), Pound diz à Folha que esse caso da Rússia terá impacto gigantesco no esporte e que o Brasil não deve estar livre do doping na Rio-2016.

Folha - Após este escândalo, o senhor ainda acredita que o modelo atual de combate ao doping tem credibilidade?

Richard Pound - É impossível fazer tudo com perfeição o tempo todo. Às vezes, se erra, mas assim é possível aprender. Fizemos o Código Mundial Antidoping e ele já passou por várias reformulações, em 2007 e em 2013. O antidoping é um processo em andamento, e as autoridades têm que se manter agarradas a ele o melhor que puderem.

O senhor achava que, 16 anos após a criação da Wada e supostamente um combate internacional mais sistematizado ao doping, um escândalo dessa proporção é aceitável?

Sempre haverá países e pessoas que não seguirão as regras. É decepcionante ter um caso como esse em um país da elite esportiva, como a Rússia. Mas é preciso entender a natureza humana. No caso da Rússia, houve uma continuidade da atitude que eles adotaram durante a Guerra Fria, quando existia a União Soviética. Essa foi a primeira vez que alguém veio a público com provas reais de que o sistema lá era corrupto, e isso nos deu a oportunidade de examinar o caso. A produção da TV alemã proveu as evidências e foi um bom começo. Pela primeira vez tínhamos provas de vídeo e áudio em vez de rumores.

Mas, mesmo com essas suspeitas anteriores sobre a Rússia, por que levou tanto para a Wada fazer uma investigação?

Era preciso ter alguma evidência para começar. Não daria para chegar a Moscou e perguntar coisas do nada. Então, posso dizer que tivemos sorte de que um repórter investigativo tenha lidado com os delatores russos que tinham a informação e a oportunidade se criou.
A extensão das investigações depende do orçamento da Wada. Esse tipo de trabalho consome tempo e dinheiro e requer pessoas com vontade de fazê-lo. Vou para a reunião do comitê executivo da Wada nesta terça-feira e aí debateremos se esse caso pode se tornar um marco para que a agência consiga mais financiamento.

Então para conduzir mais investigações em outros esportes e países, falta à Wada tempo, dinheiro e pessoal? Falta investimento?

Quando presidi a Wada, o pensamento dentro dela era de que o gerenciamento fosse o mais barato possível. De certa forma, isso era completamente equivocado. Nós deveríamos aumentar o orçamento em vez de tentar viver com o que tínhamos, para podemos fazer mais coisas. O orçamento atual está na casa de US$ 27 milhões por ano para cobrir 35 esportes olímpicos e 206 países. Com isso não se chega nem perto do suficiente. Mas ninguém entre os envolvidos quer pagar muito, então fica nisso.

E, como vocês apontam no relatório, a agência russa (Rusada), que deveria combater o consumo, cooperava com ele.

Sim, os russos estavam entre os mais testavam atletas, mas isso não significa nada. É possível fazer cem mil testes e não pegar ninguém, se você de fato não quiser. O que os russos faziam não era um programa antidoping eficiente, porque não era independente de ação externa.

A agência antidoping brasileira é ligada ao governo federal.

Se ela for independente, de fato, não vejo problema. Porque ela sabe onde estão os atletas, os técnicos, enfim, quem pode ter interesse em se dopar. Contanto que a agência seja independente, ela pode desenvolver um bom programa antidoping.
No caso da Rusada, ela avisava de antemão sobre exames-surpresa. O que não pode acontecer é se pensar que apontar um indivíduo flagrado é embaraçoso. É melhor você tirar um trapaceiro da disputa. Mas há muitos países e esportes que pensam o contrário, que suja a imagem. Por isso o presidente do COI [Comitê Olímpico Internacional, o alemão Thomas Bach] sugeriu que todos os testes sejam feitos pela Wada, para que não haja conflito.

O senhor acha que isso pode ocorrer no futuro próximo?

Se ela conseguir bastante dinheiro, sim. Tenho certeza de que vários esportes vão levantar as mãos para o céu e dizer: 'Obrigado, Deus, por não ter mais que fazer antidoping'. Mas isso, no fundo, poderia ser ruim, porque ninguém conhece melhor um esporte do que a federação que o controla.

Ainda assim, é interessante. O senhor é favorável?

Eu acho que deveria ser estudado. Começou com uma ideia irreal, mas ganhou força. Vamos discuti-la agora, na assembleia do comitê executivo. O que precisaria acontecer para que isso funcionasse? Em termos de financiamento, acesso aos países, e aí levaríamos a ideia ao COI. Os testes poderiam ser feitos pela Wada, ou por uma outra entidade independente comandada pela Wada? Há muitas possibilidades, mas até onde sei essa ideia nunca foi discutida a fundo. Acho que agora é uma boa hora.

Quanto dinheiro seria necessário para um projeto assim?

Antes de mais nada, seria preciso saber quem iria pagar a conta. Se chegamos para o Brasil e dizemos que a cota dele é de US$ 10 milhões por ano, o que aconteceria? Seria muito para o Brasil? Pode ser que todos os países apontem uns aos outros e digam que o outro deve pagar, não ele, e esse seria um problema.

As autoridades brasileiras têm o objetivo de que nem os Jogos Olímpicos do Rio nem a delegação brasileira tenham casos positivos de doping. O senhor acha possível?

É possível ter esperança de que isso aconteça. Mas eu acho que é um pouco ingênuo achar que em uma delegação de 400 a 500 atletas todos eles estejam limpos. Será possível? Provavelmente, não. Mas se é este o objetivo, que tenham esperança.

O atletismo russo foi suspenso na sexta-feira, seguindo recomendação feita. Acha que a sanção realmente mudará algo no esporte do país?

Depende da Rússia. Se eles decidirem participar dos Jogos do Rio, então há muito a ser feito, sem dúvida, e acredito que eles conseguirão. Mas se eles continuarem com isso de negar, negar e negar, vão perder muito tempo e não tenho tanta certeza se conseguirão. Eu espero que a reação deles seja de assumir o problema e resolvê-lo.

Para o esporte, foi uma boa decisão?

O relatório focava no mais importante esporte olímpico, que é o atletismo, e o maior país do mundo, a Rússia. Há potencial de um impacto gigantesco. No começo, muita gente dizia que seria impossível que uma decisão como a de sexta-feira ocorresse, por se tratar da Rússia e de atletismo. Não foi verdade. Se o esporte quer ser importante, ele tem que se manter como tal. Se o país, no caso a Rússia, quer ser relevante, ele tem que se manter como tal.

Alguns atletas russos, como Ielena Isinbaieva, protestaram e disseram que os limpos não podem pagar o mesmo preço. O que o senhor acha?

Não havia alternativa. Estava muito claro de que todo o sistema era corrompido. E se você vem de um sistema corrupto e diz que não tem a ver com isso, que não deveria ser punido, não adianta. É parte de uma rede de corrupção. Então, o que acho é que esses atletas deveriam se esforçar para fazer o sistema operar de maneira correta. E quanto aos outros atletas inocentes de todo o mundo que foram prejudicados? Eles foram trapaceados por atletas russos dopados. Esses atletas limpos de todo o mundo precisam ser protegidos também. Se os russos amam o esporte deles, têm de ajudar a consertá-lo.

Existe uma outra investigação da comissão independente. Quando será divulgada?

Será publicada no final de ano, voltada às acusações criminais contra ex-diretores da IAAF. Conversamos com as autoridades policias e dissemos que precisamos da apuração delas no final do ano, eles concordaram.

RAIO-X - RICHARD POUND

NASCIMENTO

22.mar.1942 (73 anos), em St. Catherines, no Canadá.

CARREIRA

Como nadador, foi sexto nos 100 m em Roma-1960. Como cartola, presidiu a Wada (1999-2007) e foi vice do COI, do qual ainda é membro


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