Folha de S. Paulo


Livro narra vida de campeão mundial de boxe discriminado por ser gay

Negro e homossexual, o boxeador americano Emile Griffith era conhecido por seu estilo elegante dentro dos ringues. Seu treinador Gil Clancy dizia que lhe faltava o "instinto assassino" para se tornar ainda mais combativo do que já era –Griffith conquistou cinco títulos mundiais.

Em 24 de abril de 1962, o garbo foi atravessado por ódio. Seu rival na luta pelo título dos meio-médios, o cubano Benny Paret, o provocava há meses, com mira voltada à sua orientação sexual. Na pesagem, ele estapeou o traseiro de Griffith e lhe repetiu aos risos: "maricón."

No ringue, o americano nocauteou com virulência. Paret morreu em leito de hospital dez dias após a luta.

O episódio é contado em detalhes na biografia "A Man's World: The Double Life of Emile Griffith", do jornalista britânico Donald McRae, lançada na Europa em setembro. Não há previsão de lançamento de uma edição brasileira.

Em entrevista à Folha, McRae explica que a preferência de Griffith por homens e sua impossibilidade de revelá-la em público naquele momento dos Estados Unidos geraram uma angústia profunda no lutador.

"Ele foi um homem fascinante, que levava uma vida dupla. Nas décadas de 1960 e 1970, foi comparado aos maiores boxeadores da história, como Muhammad Ali. E era também um homossexual cuja vida ideal, em termos de felicidade, talvez tivesse sido como criador de chapéus femininos [ele era estoquista de chapéus em Nova York quando foi descoberto como potencial boxeador]", diz o autor.

Se a sexualidade tinha que ser mantida escondida, o sofrimento tornou-se notório. A morte de Paret e a discriminação que sofria fizeram com que Griffith se tornasse conhecido como "um homem com dor."

"Emile sentiu tanta raiva que descontou tudo em Paret. Ele foi assombrado por isso, teve pesadelos por muitos anos, pois ele sabia que o cubano deixou uma mulher e um filho quando morreu. Ele se sentia responsável. Para ele, foi muito difícil continuar a golpear pessoas para viver depois de ter matado uma pessoa", conta McRae.

"Ele também se sentia angustiado por nunca ter a possibilidade de sair em público e dizer que era um homem gay. Nos anos 1960 e 1970, era um crime nos Estados Unidos declarar-se homossexual."

Segundo McRae, ele tinha orgulho de ser homossexual, e sempre entrava nos bares gays pela porta da frente. Griffith dava alegria à comunidade gay, que o celebrava como campeão mundial e um de seus membros.

"Eu mato um homem e a maior parte das pessoas me perdoa. Eu amo um homem e muitos dizem que isso me torna uma pessoa horrível", dizia Griffith, em passagem reproduzida no livro de McRae.

Admirado por lendas como Ali e Mike Tyson, ele tinha um nível técnico extraordinário, mas nocauteava pouco. Griffith era um boxeador que não gostava de violência.

"Ele não era fantástico de se assistir, porque ele não queria machucar o adversário, especialmente após a luta com Paret. Ele sempre queria ganhar da maneira limpa, por pontos, causando o mínimo de dor ao rival. Então, ele não conseguiu muitos nocaute explosivos", diz o biógrafo.

"Um dos boxeadores antigos que entrevistei me disse que em uma luta no final de sua carreira, na Califórnia, Emile estava massacrando o adversário. Mas ao invés de nocauteá-lo, ele o encorajava com gritos de `vamos lá, você aguenta até o final'. Na minha opinião, o episódio mostra que ele exibiu o melhor lado da humanidade", continua.

"Ele mostrou que a vida envolve alegria e sofrimento. Ele aproveitou bem a vida, riu e dançou muito. Mas sofreu muito. Sempre que ele lutou com alguém ou amou alguém, ele quis mostrar seu lado mais humano, sua compaixão."

AS BATALHAS DO PRESENTE

Em um dos capítulos mais instigantes do livro, McRae trata de Orlando Cruz, boxeador porto-riquenho que se assumiu homossexual publicamente em 2012.

"Exatamente 50 anos após a luta entre Emile e Paret, Orlando fez seu pronunciamento. A mim, pareceu muito significativo. Eu o perguntei se ele achava que outros boxeadores seguiriam seu caminho, mas ele disse que não, que havia outros, mas que não é um caminho fácil. Eu acho que melhorou um pouco desde os tempos de Emile, já que alguns atletas conseguem se posicionar abertamente, mas não muito. As batalhas continuam as mesmas", opina.
No mesmo ano, ele conheceu Griffith pessoalmente, no que descreve como um "encontro triste."

"Ele estava em um estágio avançado de demência, que aconteceu porque ele lutou um número excessivo de vezes durante a carreira. Então, ele estava em uma cama com os olhos abertos, mas não havia vida ali", relata.

Até sua morte, em 2013, seu principal aliado foi Luis Rodrigo, seu companheiro por 25 anos.

"Eles se conheceram quando Rodrigo estava em um centro de detenção e Emile, aposentado e sem dinheiro, trabalhava como guarda. Depois que Rodrigo saiu da cadeia, eles passaram a morar juntos. Sempre se amaram muito."

A MAN´S WORLD: THE DOUBLE LIFE OF EMILE GRIFFITH
Autor Donald McRae
Editora Simon & Schuster UK
Quanto £ 13,60 (R$ 78; amazon.co.uk )
Avaliação Ótimo

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LEIA TRECHO DO LIVRO

"Ele deixou o metrô na rua 42. Antes de lutar, ele queria o conforto de andar pelas ruas familiares da Times Square, onde, à noite, ele ria e dançava com a comunidade gay hispânica e as velhas drag queens. Pouco antes das 11h, naquela manhã de sábado, e a caminho da maior luta de sua vida [contra Benny Paret], homens, mulheres, travestis, prostitutas e strippers o chamaram para lhe desejar boa sorte. Normalmente, ele pararia para falar com todos. Mas daquela vez ele apenas ergueu seu punho e seguiu em frente. Ele lutaria por eles também.

[...]

Griffith estava prestes a deixar a balança quando ele ouviu seu treinador Gil Clancy gritar: "Ei, cuidado!". Ele deu meia-volta. Paret ria ironicamente e fingia fazer sexo com ele, enquanto seus treinadores gritavam histericamente. Ele mostrava o dedo para Griffith. "Ei, `maricón'", disse Paret, sussurrando, 'eu vou pegar você e seu marido."

Tradução de GUILHERME SETO


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