Folha de S. Paulo


Rússia ainda sofre para lidar com casos de racismo no futebol

Não era o que o Kremlin esperava quando conquistou o direito de organizar a Copa do Mundo de 2018. A Rússia esperava desfrutar das glórias do futebol no último final de semana, com o presidente Vladimir Putin servindo de mestre de cerimônias em São Petersburgo para o sorteio das eliminatórias da competição. Mas o evento de gala terminou apequenado por uma disputa tóxica sobre o racismo dos torcedores de futebol russos - uma discussão que rapidamente atraiu um exótico elenco de personagens que inclui uma vencedora de concurso de miss, a ONU e um antigo ministro do governo britânico.

As sementes da acrimônia foram semeadas no começo da semana quando Emmanuel Frimpong, meio-campista nascido em Gama, criado em Tottenham, na região norte de Londres, e agora jogador do FC Ufa, da liga russa, foi suspenso por dois jogos depois de erguer o dedo médio em resposta ao que ele disse terem sido apupos que o chamavam de macaco da parte da torcida adversária, do Spartak Moscou.

Depois que as autoridades futebolísticas locais decidiram não agir contra o Spartak, afirmando não haver sinais de comportamento racista, Frimpong declarou no Twitter que embora "não visse problema" em sua punição, "a federação russa dizer que não viu ou ouviu qualquer sinal de racismo é mais que uma piada". Ele acrescentou: "Não quero dizer que não exista racismo na Inglaterra, claro, mas não nessa escala insana".

Os comentários motivaram uma tentativa coordenada, mas desajeitada, de controle de danos, da parte das autoridades russas, que parece só ter piorado as coisas.

"Isso não representa a atitude dominante em nossa sociedade", disse Alexei Sorokin, o presidente do comitê organizador da Copa na Rússia. "É só um incidente, e eles estão se tornando cada vez mais escassos, agora".

O ministro russo do Esporte, Vitaly Mutko, declarou que "o racismo no futebol é um problema não só na Rússia", mas prometeu que "os responsáveis não passarão impunes", graças a novos observadores nos jogos e sanções mais duras por racismo.

Os torcedores de futebol russos parecem ter ficado nada impressionados com a resposta. "A maneira pela qual o caso Frimpong foi tratado mostra que a negação continua a ser a resposta das autoridades russas quando elas enfrentam incidentes racistas, e eles veem o problema como um ataque à imagem da Rússia ou tentativa de questionar o direito do país a organizar a Copa do Mundo, o que não é o caso", disse Pavel Klymenko, da rede Fare, que combate a discriminação no futebol.

Robert Ustian, membro do comitê Football Supporters Europe que criou o grupo Torcedores do CSKA Contra o Racismo, disse que a reação das autoridades russas era digna só de "vergonha", e oferecia "um excelente exemplo de como não lutar contra o racismo".

"Repetir sem parar que existe um problema em outros países... e com certeza existe um problema em outros países... mas somos nós que vamos sediar a Copa do Mundo, e seremos o foco da grande mídia, e eles não permitirão que varramos a questão para baixo do tapete", ele disse.

A resposta das autoridades russas também parece ter sido considerada inadequada pelo futebolista brasileiro Hulk. O atacante, que joga pelo Zenit de São Petersburgo, deveria ter comparecido ao sorteio, mas optou por não ir, declarando que enfrentava racismo "em quase todos os jogos" que realiza na Rússia. A Fifa mencionou "compromissos pelo seu time" como motivo de sua ausência, mas pouca gente se deixou convencer pela explicação.

A ausência de Hulk agravou uma semana de desastres de relações públicas para o Kremlin, que incluiu a perda do título de "Miss Charme" pela vencedora do concurso de beleza da Premier League russa, Olga Kuzkopva, torcedora do CSKA de Moscou, depois de ser descoberto que ela posou diante de pichações neonazistas, usou camisas com símbolos da extrema direita e postou memes fotográficos racistas. Para agravar o desconforto, houve uma declaração de Yuri Boychenko, líder de uma campanha de combate à discriminação da ONU, de que "há falta de compreensão, pelas autoridades russas, do que é racismo".

Em contraste, uma recente pesquisa online entre os torcedores russos de futebol constatou que três quartos deles acreditam que o racismo seja um problema no esporte, e um problema que parece estar se agravando.

Um recente relatório da Fare e do Sova Centre, de Moscou, catalogou 99 incidentes de racismo e manifestações de extrema direita nos estádios, e 21 ataques com motivação racial por torcedores russos de futebol, nas temporadas 2012-2013 e 2013-2014. A liderança das igrejas protestantes de Moscou informou ao "Observer" que agora alerta imigrantes africanos a evitar o uso do metrô e a presença em áreas vizinhas a estádios em dias de jogo.

O lorde Triesman, antigo presidente da federação de futebol da Inglaterra e antigo ministro do Trabalho britânico, disse que a incapacidade da Rússia para eliminar o racismo faria com que torcedores pensassem duas vezes antes de ir ao país para assistir ao torneio de 2018. "A ideia de que exista um país onde é inteiramente comum que as pessoas apupem e respondam de maneira desagradável a um jogador porque ele é negro não deveria ser parte de nosso mundo", disse Triesman.

Putin, no entanto, estava determinado a não permitir que a controvérsia se sobrepusesse ao sorteio. Depois de subir ao palco ao som de "Let's Get This Party Started", de Pink, ele declarou que a Copa do Mundo de 2018 seria uma boa oportunidade de mostrar uma Rússia "aberta e multifacetada".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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