Folha de S. Paulo


Faltava 'zerar' o jogo, e em Roland Garros-2000 consegui isso, conta Guga

Há 15 anos, Gustavo Kuerten entrou na quadra central do complexo de Roland Garros, em Paris, morto.

Vinha de dois confrontos de cinco sets nas quartas de final e na semifinal do torneio, contra o russo Yevgeny Kafelnikov e o espanhol Juan Carlos Ferrero, respectivamente.

Teria pela frente no último jogo do campeonato o sueco Magnus Norman, com quem rivalizara pelo domínio da temporada europeia de saibro.

Guga sabia que era matar ou morrer. O rival estava mais descansado, tinha passado com mais facilidade por seus oponentes e havia vencido o próprio Guga na decisão de um torneio pouco antes.

O brasileiro foi para a jugular. Triunfou nos dois primeiros sets, perdeu o terceiro, mas fechou a partida em 3 sets a 1. Saiu da quadra onde entrou morto com a glória de um bicampeonato.

O resto é história.

Que Guga conta abaixo.

*

Ganhar uma vez, acontece.

Principalmente no meu caso, um brasileiro. Poderia jogar mais um milhão de vezes e aquilo, ganhar Roland Garros, não aconteceria de novo. Pode riscar do memorando, não está na enciclopédia.

Agora, ganhar uma segunda vez e confirmar que eu era um jogador de outro nível, aí é diferente.

2000 foi o Roland Garros mais difícil que eu tive na minha carreira, porque eu tinha noção do que era e do que valia para mim aquele título.

O Norman e o [Marat] Safin eram os cara que podiam me provocar ao máximo. Naquele Roland Garros, o Norman ganhou do Safin [nas quartas de final] e aí entrou no meu caminho. [Nas quartas de final] eu havia enfrentado o [russo Yevgeny] Kafelnikov, sempre ele, mas tirei forças nem sei de onde e passei.

O jogo contra o [espanhol Juan Carlos] Ferrero na semifinal estava perdido também, mas a experiência de 1999, quando entrei no torneio como favorito mas tive uma grande decepção que foi perder para o [ucraniano Andrei] Medvedev nas quartas, me ensinou. Tomei umas pancadas, mas levantei de novo. Aprendi a lidar com essa ansiedade de "tem que ser bicampeão, tem que ser bicampeão".

Isso é normal. Se não houvesse essa ansiedade eu não seria jogador. Se não houvesse gana, lá no fundo, não teria chegado aonde cheguei. Isso tudo foi bagagem que consegui utilizar bem ao meu favor, tirando da cartola duas partidas perdidas, nas quartas de final e na semifinal em 2000.

Na final, contra o Norman, eu tava morto. Vinha de dois jogos de cinco sets nas rodadas anteriores. Ele vinha atropelando e eu vinha goela abaixo. Eu precisava inibi-lo desde o início e fazê-lo sentir a pressão de jogar a final, que era a primeira vez.

A tendência era que isso acontecesse, mas eu precisava fazer aquilo acontecer. De cara já ativei essa estratégia, e começou a funcionar de imediato. Fiz 6/2 no primeiro set. Ganhei o segundo também. O jogo caminhava para terminar em três sets, mas eu perdi um momentozinho e pum.

Mas isso é o fascinante do tênis. O Norman, por achar que estava tudo perdido, começou a arriscar e elevou o tênis dele lá para cima. De minha parte, eu dei uma bambeada. Será que eu estava cansado? Não estava? Ele venceu o terceiro set e começava a jogar mais e mais e mais.

Mas, quando Norman fez 4/2 no quarto set, também deu uma hesitada. Porque, é claro, ele também começou a acreditar na possibilidade da vitória. A chaminha acesa do "pode ser" dá uma mudada na perspectiva.

E eu logo percebi. Ao invés de esperar o quinto set, pensei: "tenho que atacar aqui!". Igualei 4/4, fiz 5/4 e tive dois match points, com um 15/40. Pensei "é agora", "é minha chance", "não posso deixar passar".

Aí Norman disparou uma bola que eu vi fora, mas o juiz desceu da cadeira e deu a marca como boa. Falei: "Guga, fica tranquilo, ainda está 30/40, tem mais um match point". Só que o Norman salvou e ficou 40/40. Comecei a me desesperar. E comecei a viver a maior loucura de minha carreira em uma quadra de tênis.

"Vou fechar e ponto, porque esse campeonato é meu. Sou o melhor, estou preparado, tá ganho."

"Ah, eu sou horrível. Perdi. Esse juiz é um m..."

Era uma montanha russa emocional em questão de dois segundos.

E eu errava uma devolução de saque e achava que "não dava mais". Aí acertava uma e me empolgava. E foram 50 minutos nessa situação.

A minha sorte foi que em nenhum momento o Norman passou à frente do placar. Se ele passasse, eu ia entrar em colapso, porque lidar com isso é muito difícil.

Essa é a dificuldade do tênis. Bater direita, esquerda, isso dá para acertar todas. Mas entrar ali, na quadra central, quando não dá para voltar ponto, quando só se faz uma vez, aí é difícil. E num momento em que se começa a titubear, 70% valem muito, 80% valem muito. Parei, respirei, fingi que estava calmo. Cada detalhezinho faz diferença, e naquele dia fez.

Foram 50 minutos intermináveis até a partida acabar em lance quase idêntico àquele em que o juiz marcou dentro a bola que eu achei fora, do lado inverso da quadra. Mas a bola foi igualzinha.

Ainda marquei e esperei o juiz descer, porque eu queria ser bicampeão de qualquer jeito. Fui.

Aquele título levou minha carreira a um novo patamar. Aquele título já estava pintando em cores vivas. Pô, em 1999 eu fiz um ano sensacional e não o vencera. Por mais dramático que foi, e difícil, era uma passagem para a próxima fase.

Faltava zerar o jogo. Aquele título me deu isso.


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