Folha de S. Paulo


'Juventus deveria devolver o troféu', diz Rossi 30 anos após tragédia

Gripado, o craque do Liverpool, Kenny Dalglish dormia no vestiário uma hora antes da final da Copa da Europa, em 29 de maio de 1985, entre sua equipe e a Juventus, da Itália. Foi o zagueiro Steve Nicol quem acordou o atacante com más notícias.

"Havia algo errado. Pelo barulho, a gente percebia isso. Mas ninguém sabia que estava acontecendo uma desgraça", afirma o defensor, um dos ex-jogadores que falaram à Folha sobre o que ficou conhecido como a "tragédia de Heysel".

Nas arquibancadas do decrépito estádio de Bruxelas, na Bélgica, 39 pessoas morreram sufocadas, espremidas contra um muro ou esmagadas quando este desabou. A tragédia, que completa três décadas, mudou a cara do futebol. Sete anos depois, a copa passou a se chamar Liga dos Campeões, hoje o torneio de clubes mais lucrativo do planeta.

"Antes de entrarmos em campo, ouvimos que apenas um torcedor havia morrido. Só depois soubemos da realidade. Sempre acreditei que a Juventus deveria devolver o troféu. Em respeito às famílias das vítimas. Não há lembrança de alegria quando 39 pessoas morreram", confessa Paolo Rossi, centroavante da Juventus.

Torcedores italianos atiraram pedras nos britânicos. Estes romperam a cerca de proteção e avançaram contra os rivais que, assustados, correram, causando o tumulto.

"É incrível que a partida acontecido. Se eu soubesse o tamanho da desgraça, teria me recusado a jogar. Outros teriam feito o mesmo", diz o meia Ronnie Whelan, então do Liverpool.

A Juventus ganhou por 1 a 0, conquistando o troféu pela primeira vez. O artilheiro da final foi o hoje presidente da Uefa, Michel Platini, que comemorou o gol pelo que ele representava: o título. Jornalistas o criticaram, dizendo que ele havia "sapateado sobre os mortos."

"Nós não tínhamos noção da tragédia. De todos os títulos que ganhei, este é o único que não tenho orgulho", comenta o meia Marco Tardelli.

A Uefa colocou a culpa nos torcedores do Liverpool. A primeira ministra britânica Margaret Thatcher pediu que os clubes do Reino Unido fossem retirados dos torneios continentais. A suspensão durou cinco temporadas.

"No jantar, as nossas mulheres disseram ter visto corpos de torcedores mortos empilhados perto da bandeira de escanteio. Foi quando comecei a perceber a gravidade da situação e senti que aquele jogo jamais deveria ter começado. O futebol não pode ser mais importante do que a vida ", completa Whelan.

A investigação conduzida pela justiça belga apontou que dirigentes e a polícia deveriam compartilhar a culpa com 14 torcedores do Liverpool condenados a três anos de cadeia. O juiz do caso, Pierra Verlynde, disse ter ficado estarrecido com a "incrível passividade", do capitão Johan Mahieu, responsável pelo policiamento.

"Semanas antes, jogadores do Tottenham vieram falar comigo porque eles haviam jogado em Heysel na pré-temporada. Disseram que aquele estádio não tinha a menor condição de sediar uma final. Estavam certos", afirma Nicol.

Alarmado com a possibilidade de violência, o Liverpool solicitou à Uefa a mudança do local da decisão. O pedido foi negado. Os dois times queriam que os ingressos fossem vendidos apenas para ingleses e italianos. Não foram atendidos. Belgas compraram entradas e as revenderam, às centenas, para a torcida da Juventus na zona neutra do estádio, bem ao lado dos britânicos.

"O estádio estava em situação lastimável. Foi um erro marcar o jogo para lá", concorda Tardelli.

Em 2005, os dois times se encontraram nas quartas de final da Liga dos Campeões. Na Inglaterra, foi feito mural humano com a palavra "amicizia" (amizade, em italiano). A maioria da torcida visitante virou as costas. Em Turim, foi erguida a faixa com referência a 96 torcedores do Liverpool mortos em 1989 na cidade de Sheffield e a frase "Deus existe".

Alessandro Del Piero, atacante histórico da Juventus, confessou ter recusado oferta para jogar no clube britânico por causa da tragédia de Heysel.

Os próprios jogadores que estiveram em campo em 1985 reconhecem que a mancha nunca será apagada.

"É um momento negro da vida de todos que estiveram lá. Ninguém nunca vai esquecer", finaliza Rossi.


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