Folha de S. Paulo


'O doping não irá embora tão cedo', diz delator de Lance Armstrong

Eric Risberg - 18.ago.2004/Associated Press
O ex-ciclista Tyler Hamilton, mostra medalha de ouro conquistada na Olimpíada de 2004
O ex-ciclista Tyler Hamilton mostra medalha de ouro conquistada na Olimpíada de 2004

O norte-americano Tyler Hamilton, 44, foi um dos expoentes do ciclismo durante o final dos anos 1990 e início dos 2000. Mas entrou para a história do esporte como o algoz de Lance Armstrong, 43, o ex-heptacampeão da Volta da França que foi seu companheiro durante anos.

Hamilton se tornou um dos delatores na investigação feita pela Usada (agência antidoping dos EUA), levada a público no final de 2012, que atestou que Armstrong se dopou durante boa parte de sua carreira.

No início de 2013, em entrevista a Oprah Winfrey, Armstrong confessou que usou substâncias ilícitas para obter seus triunfos. Acabou banido do esporte e alijado de suas principais conquistas, que um dia lhe haviam dado o status de maior ciclista de todos os tempos.

Hamilton abandonou o ciclismo e, atualmente, trabalha como preparador de atletas amadores nos Estados Unidos.

No meio-tempo, participa de iniciativas da Usada e viaja o mundo para palestras sobre os malefícios do doping.

No mês passado, esteve no Brasil a convite da ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem) para falar com atletas brasileiros em evento em São Paulo.

Em entrevista à Folha, ele diz que a explosão do "caso Armstrong" foi boa para o ciclismo na medida que mexeu com a ingenuidade de fãs e patrocinadores.

"O botão de 'reset' precisava ser acionado. Obviamente, o doping ainda está presente, todos sabem disso. Mas está muito melhor do que nos meus dias, os 'dias escuros'. A sociedade precisa saber a verdade atrás do esporte", disse.

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O que você faz atualmente?

Tenho trabalho de preparação e orientação, principalmente focado em ciclistas. Na maior parte do tempo eu prescrevo planilhas de treinamento customizadas.

Para atletas de elite?

Não, não. São para o que eu chamo de "guerreiros de final de semana". Gente que é pai de família, não tem muito tempo e quer ter uma atividade física monitorada. É legal, é como ser professor.

Quantos alunos você tem?

Cerca de 50. É um negócio pequeno. Tenho outro professor que me ajuda com as planilhas. Viajo um pouco, conheço pessoas novas e me ajuda a relaxar.

Há quanto tempo você se dedica a isso?

Desde 2009, cerca de seis anos. Também dou algumas palestras, mas não é muito comum. É uma maneira de dar um retorno às novas gerações, porque sei que fiz várias besteiras.

Qual é a reação geral das plateias para as quais você palestra?

Geralmente sou bem recebido. Falo do coração. Não minto mais. Sou o mais honesto possível. Ainda é um pouco difícil falar, porque as pessoas reagem, mas me sinto bem de falar. Eu fui parte do problema, um dos indivíduos que comprometeram o esporte, mas hoje quero ajudar a salvar o barco. Hoje, ajudo a Usada [agência antidoping dos EUA] o máximo que posso. Vou a painéis, algumas vezes falo com Travis Tygart [executivo-chefe da Usada]. Eu costumava desgostar muito dele. Acho que ódio é uma palavra forte, mas era quase isso. Não diria que eu o odiava, mas era próximo, e por muito tempo. Atualmente somos amigos, ele entendeu as razões pelas quais menti e por que, mesmo pego, menti por muito tempo. Havia muita pressão para continuar mentindo. E um pouco de orgulho. Escrever o livro ["A Corrida Secreta de Lance Armstrong"] foi mais difícil do que qualquer Volta da França.

Passados mais de dois anos do caso Armstrong, você acha que o combate ao doping melhorou?

A explosão no ciclismo foi triste e frustrante para muita gente, mas no geral foi boa. Precisava acontecer. O botão de "reset" precisava ser acionado. Obviamente, o doping ainda está presente, todos sabem disso. Mas está muito melhor do que nos meus dias, os "dias escuros". A sociedade precisa saber. Às vezes, quando uma coisa parece inacreditável é porque ela é realmente inacreditável. Eu sempre sonhei em conquistar uma medalha de ouro, não importava em qual esporte, e ser famoso. Mas não sentia que era honesto.

Você acha que o caso Armstrong mudou, de alguma forma, o esporte como um todo?

Acho que sim. Muitos fãs eram ingênuos e começaram a questionar o que veem. Embora triste, foi saudável. Foi um botão de rebobinar para o ciclismo e todo o esporte. O doping não irá embora tão cedo.

Você foi campeão olímpico, mas teve de devolver a medalha devido ao doping. Como foi perder o ouro?

Aprendi muito sobre mim naquela época. Aceitar a verdade é difícil. Me senti melhor ao devolver a medalha. Antes de o COI pedir, eu devolvi a medalha voluntariamente. Ainda tenho alguns prêmios que conquistei ao longo da carreira, mas não me importo muito com isso.

Você ainda frequenta corridas de ciclismo?

Não, nunca mais. Não é que eu o odeie, mas não pego a bicicleta ou procuro ir a eventos.

Você acredita que o esporte fique livre de doping um dia?

Espero que um dia isso seja possível. Mas há muito trabalho a ser feito. Muita gente se esquece que praticamente não havia controle antidoping decente, digamos, uma década atrás. E antes disso o controle era raríssimo, parecia um faroeste. Há coisas positivas, embora o doping ainda seja grande. Mas se você imaginar daqui a dez anos, a tendência é positiva. É possível se orgulhar do progresso.

Você ainda tem algum tipo de contato com os ex-colegas de ciclismo?

Sim, ainda falo com muitos deles. Eu vi Lance Armstrong em março, o governo norte-americano o está processando. É um processo cível, sou testemunha. Não sabia como seria. Foi estranho, mas não tenho raiva dele nem nada. Por muito tempo não gostava dele, mas agora passou. Eu faço muito ioga agora. Tenho 44 anos, vivi muitas coisas, muitos altos e baixos.


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