Folha de S. Paulo


Antropólogo diz que fim do racismo no esporte parece estar muito longe

Jogar futebol nos Estados Unidos, na década de 1970, era para os "hippies" e imigrantes. É como o californiano Orin Starn lembra dos chutes que dava após aprender a jogar na Itália, onde morou.

Hoje, aos 53 anos e Ph.D. em antropologia, ele bate bola apenas com o filho. O esporte que pratica atualmente é "de velho": o golfe. Modalidade que rendeu seu mais recente livro: "The Passion of Tiger Woods" (2012, sem edição no Brasil), sobre o escândalo sexual envolvendo o golfista número um do mundo.

Nos últimos anos, a paixão de Starn pelo esporte foi transformada em estudo acadêmico.

Chefe e professor de Antropologia Cultural da Duke University, na Carolina do Norte, ele também é o responsável pelo curso online "Esportes e Sociedade", do site americano Coursera, que diz ter milhões de alunos espalhados pelo mundo.

Especialista em globalização, movimentos sociais, política indigenista e América Latina –além da Itália, ele já morou no Peru e em São Paulo, onde se encantou com o Corinthians de Sócrates– Starn fala, em entrevista à Folha, sobre a importância da Copa do Mundo, os protestos no Brasil, as diferenças do futebol na América Latina e nos Estados Unidos, racismo, homofobia, enfim, o papel do esporte na sociedade contemporânea.

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Folha - Qual sua ligação pessoal com futebol?
Orin Starn - Eu cresci, em parte, na Itália, e aprendia a jogar lá. Naquela época, na década de 1970, apenas os "hippies" e imigrantes jogavam 'soccer', como nós estranhamente chamávamos o futebol. Eu joguei no time da faculdade aqui [nos Estados Unidos] e em várias ligas de verão. Estou velho demais para jogar agora, exceto chutando bola com o meu filho. Hoje eu pratico esporte de velho: o golfe.

Você é torcedor de algum clube no Brasil, na Europa ou na MLS [liga de futebol dos EUA]?
Eu sou um pretensioso do futebol e não posso levar a MLS a sério. Eu vivi por um ano em São Paulo, em 1982, e costumava ir ao Morumbi para assistir ao Corinthians. Ver Sócrates em ação e envolvido no samba é uma das minhas memórias esportivas favoritas. Vou ficar torcendo para a Itália na Copa do Mundo, em razão da minha fidelidade de infância e porque Andrea Pirlo é o herói de homens envelhecidos como eu em qualquer lugar.

Como o futebol é visto nos EUA atualmente?
A popularidade do futebol tem aumentado significativamente nos últimos anos. Muitos dos meus alunos aqui na Duke seguem a Premier League e usam camisetas de Messi e Neymar em torno do campus. É muito ruim que ainda somos tão ruim no futebol.

O futebol é estudado nas universidades norte-americanas?
Sim, existem alguns acadêmicos que fazem um trabalho importante sobre futebol, como o crítico literário Grant Farred. Mas os melhores estudos sobre o futebol ainda são feitos em lugares onde o esportes é grande por ingleses, brasileiros ou ou gênios como o uruguaio Eduardo Galeano.

Nos Estados Unidos fala-se que o futebol é um esporte para mulheres e crianças. Essa ainda é uma verdade?
É verdade, em um certo grau. Nossa equipe feminina é fabulosa, muito melhor do que a dos homens e até do que a seleção das suas mulheres brasileiras. E o futebol juvenil é um fenômeno gigantesco no subúrbio de todo o país. É um quebra-cabeça o porquê os homens americanos estão ainda assim, em um nível B no futebol quando milhões de crianças jogam aqui. Uma explicação comum é que nossos filhos nunca aprendem a desenvolver qualquer talento ou criatividade, porque elas são introduzidas ao jogo através de equipes com amarras e passes mecânicos. Elas não têm senso de diversão na e da beleza do jogo.

No aspecto antropológico, o que significa a Copa do Mundo?
A Copa do Mundo é o nosso grandioso ritual global. Nada atrai mais o planeta junto do que a emoção daquelas poucas semanas. Eu gostaria que fosse tão fácil unir pessoas e países para combater a desigualdade, acabar com as guerras e serem bons uns para os outros como é levá-los a ligar a TV para assistir aos jogos da Copa do Mundo.

Qual a importância de países como Brasil, Argentina e Uruguai serem campeões do mundo sobre os colonizadores europeus?
Nós vimos o que Eduardo Galeano chamou de "tropicalização do futebol". Um jogo inglês sisudo que foi transformado nas ruas e favelas da América do Sul em um "Jogo Bonito" ao ritmo de samba e tango. Ainda há, é claro, uma dimensão neocolonial para a economia de futebol –Brasil, África e o sul global enviando estrelas do futebol, de origem pobre, para jogar para as potências ricas do norte. Mas eu acho que, hoje em dia, o futebol é mais sobre o orgulho nacional do que o sentimento anticolonial, pelo menos no Brasil, Argentina e Uruguai. Eles são, afinal, as próprias potências do futebol.

Por que existe ainda hoje preconceito racial no esporte?
Esportes sempre refletem a sociedade. Nós gostamos de imaginar que o esporte é um terreno de competição e prazer livre das teimosas divisões de dinheiro e cor. Mas não é, e raça e racismo entram no campo de jogo e além dele de incontáveis maneiras. É fácil se concentrar apenas no lançamento da banana e nos gritos de insulto onde o racista obscuro sai dos poços da sociedade para o estádio. Mas o problema é muito mais profundo do que isso, a questão de dinheiro, da cor e da marginalização. São os brancos, só para começar, que tendem a ter o dinheiro para ir aos estádios caros de agora, ao passo que muitos jogadores tendem a ser mestiços e de famílias mais pobres. Exceto para o árabe bilionário do petróleo árabe, é uma oligarquia branca dos super ricos que controla os grandes clubes e o império obscuro da FIFA. A lógica racial desigual de um mundo global, que remonta às grandes conquistas europeias, ainda é muito visível em nosso desejada utopia do verde campo de futebol.

Você acredita o racismo nos esportes um dia vai acabar?
O racismo vai acabar nos esportes quando acabar na sociedade. E esse dia parece estar muito longe.

Qual sua opinião sobre a reação do jogador brasileiro Daniel Alves, do Barcelona, ao comer uma banana que foi jogada em campo durante partida do Campeonato Espanhol?
Daniel Alves comer a banana foi uma maravilhosa performance de arte contra o racismo. Era como se, canibalizando um símbolo ofensivo, ele desarmasse seu poder e transformasse o absurdo do arremesso da banana e seu simbolismo racista contra o próprio símbolo.

Como você avalia o caso de racismo praticado por Donald Sterling, agora ex-dono do Los Angeles Clippers?
Oitenta por cento da NBA é afro-americana e a estrutura do poder ainda é branca –o único proprietário negro entre as trinta equipes é Michael Jordan. Tem sido um clube de meninos brancos bilionários. Mas a forte reação contra Sterling sugere que este tipo de conversa racista não será mais tolerada, mesmo que as desigualdades raciais subjacentes da pobreza e da falta de oportunidade não seja corrigida por nada disso.

O preconceito contra homossexuais no futebol é ainda mais difícil de acabar?
O esporte sempre foi um campo de provações masculinas, ligadas a ideologias do machismo e ao homem heterossexual que tudo conquista. E, sim, eu acho que a homofobia tem sido parte da cultura do futebol. Estou dizendo que nenhum jogador atual ativo na Série A [Campeonato Italiano], Premier League [Inglês], La Liga [Espanhol] saiu do armário –porque ainda há medo da repercussão. Mas eu acho que as atitudes estão mudando –incluindo o recente e corajoso anúncio do jogador alemão aposentado Thomas Hitzlsperger que assumiu ser é gay. E estou esperançoso de que podemos avançar em direção a uma cultura de futebol na qual você não vai ser discriminado por causa de com quem você quer dormir."

Desde junho do ano passado convivemos no Brasil com grandes protestos sociais e manifestações nas ruas. Este aspecto do país é apresentado pela mídia dos Estados Unidos? Qual sua visão sobre os reflexos deles na Copa?
Na verdade, tem sido bastante extensa a cobertura dos protestos. Eu acho que eles pegaram muitas pessoas –talvez os próprios brasileiros– de surpresa, pois é difícil mobilizar tantas pessoas em qualquer lugar, muito mais em um país conhecido pelo Carnaval, futebol e em como levar uma vida boa. Acho que o próximo teste será ver o que acontece durante a Copa do Mundo em si, com o próprio Pelé aconselhando as pessoas a ficar fora das ruas. Espero que haja mais protestos. Com os holofotes globais sobre a Copa do Mundo, é uma grande oportunidade para chamar a atenção dos problemas de corrupção, a discriminação racial e da desigualdade social que permanecem como um problema no Brasil, não importa toda a conversa neoliberal brilhante sobre o milagre econômico brasileiro.

Como a Copa é vista pelos norte-americanos, qual tipo de discussão ela desperta hoje?
A campanha em torno da Copa do Mundo ainda não foi realmente lançada aqui. Será interessante ver o quanto a atenção que gera uma vez que o torneio está prestes a começar.

O futebol seguirá sendo, durante muitos anos, o esporte mais popular do mundo?
Sim, eu acho que vai continuar sendo o colosso do esporte mundial. Nada mais está sequer perto de sua popularidade, uma popularidade verdadeiramente global, de uma vila do oeste africano ao outback australiano às ruas de uma cidade polonesa. Uma razão óbvia para isso é que o futebol não custa dinheiro para jogar -tudo o que você precisa é uma bola e um pedaço de chão. E, depois, há a beleza do jogo em si, a glória de tantas estrelas e equipes míticas. Pode-se argumentar que o futebol é realmente a única coisa que as pessoas ao redor do mundo têm em comum.

O que atrai tanta gente a gostar de futebol ainda no século 21?
A Internet e a globalização do futebol tem sido boas para o jogo e parecem realmente estar expandindo a já enorme base de fãs. Se você fosse, como eu, um fã de futebol nos Estados Unidos, você não tinha como seguir, por exemplo, as equipes da Série A há uma década. Agora nós todos podemos assistir a jogos de todo o mundo ou, ainda, dirigir equipes icônicas como Manchester United e Juventus nos jogos de vídeo game.

Os principais jogadores de Brasil, Argentina e outros países sul-americanos da atualidade jogam nas grandes ligas da Europa. O que está imigração pode significar em algumas décadas?
Os principais jogadores de futebol têm sido uma das exportações mais bem sucedidas da América do Sul ao longo do último par de décadas. É tudo por causa da economia de livre mercado do nosso mundo, claro. E até que as equipes da América do Sul possam pagar os mesmos salários, a fuga de talentos vai continuar.

A TV a cabo e a Internet facilitam a transmissão de mais jogos de grandes ligas de todo o mundo. Esta expansão do acesso vai fazer com que mais pessoas torçam por times de fora de seu país?
Eu acho que essa vasta expansão do acesso a jogos para assistir está redesenhando as linhas de fãs ao redor do mundo. Antigamente, o apoio a uma equipe estava amarrada à geografia –se você morava em Florença, era provável que fosse um fã da Fiorentina; se no Rio, seria Flamengo, Botafogo ou uma das equipes do Rio; e assim por diante. A maneira de apoiar as equipes foi desencadeada, com as crianças que são fãs do Liverpool no Egito e torcedores do Real Madrid em Miami, todos habilitados pela internet e pela televisão.

Na Copa do Mundo vamos ver alguns jogadores naturalizados jogando por países nos quais não nasceram. Este processo prejudica o futebol?
Vivemos em um confuso mundo de imigrações e fronteiras. Essa realidade se reflete na cidadania e na política de quem acaba jogando para quem. Eu acho que é bom, a realidade de um planeta encolhedor. Isso não me incomoda. Eu não acho que está mudando o equilíbrio de poder do futebol, os poderosos continuarão sendo os brasileiros ou alemães.

A Fifa se orgulha de dizer que tem mais membros do a as Nações Unidas. O que você pensa da importância que as pessoas em todo o mundo dão ao futebol?
Eu acho que é bom para nós, como uma espécie, ter algo em comum. E futebol parece ser isso. Sobre a FIFA eu ainda não entendo muito bem como uma sociedade inexplicavelmente fechada consegue manter tal monopólio com mão de ferro sobre realização do jogo e ficar com os lucros. Eu espero que haja mais investigação sobre a decisão absurda de ter a Copa do Mundo de 2022 nos estados do Qatar durante o verão, quente de morrer. É difícil não pensar que não houve pagamentos de alguma forma aos envolvidos.

A Copa do Mundo também é uma competição entre marcas. A comercialização pode ser um mal para o futebol?
A trajetória de hipercomercialização é realidade em todos os esportes hoje em dia. A Copa do Mundo é levada a você pela Nike, Coca-Cola e os seus outros patrocinadores. Eu gostaria que o dinheiro não desempenhasse esse papel. Mas eu não acho que mesmo a mão pesada dos patrocinadores, seus comerciais intermináveis e autopromoção pode tirar a beleza e emoção dos jogos em si.

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Orin Starn, professor de Antropologia Cultural da Duke University, na Carolina do Norte, nos EUA
Orin Starn, professor de Antropologia Cultural da Duke University, na Carolina do Norte, nos EUA

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