Folha de S. Paulo


Opinião: Você não viu Senna correr? Jura? Veja agora

Você não viu Senna correr e mesmo assim tem certeza de que ele foi o melhor. Sou de uma geração que padece de mal semelhante, a que não viu Pelé jogar mas foi massacrada ano após ano com todo tipo de informação possível para provar que ele foi e sempre será o melhor: gols, quase gols, livros, fotos, depoimentos, entrevistas.

Há uma espécie de necessidade da geração vidente convencer as seguintes de que viu e experimentou algo verdadeiramente único.

Essa memória transmitida é importante. Sem ela, por exemplo, eu acreditaria que Pelé foi o sujeito que jogou em Nova York um futebol que não podia terminar em empate e que logo se aposentaria rico para trocar a mulher pela Xuxa, 19, capa de "Playboy", espécie de rainha dos adolescentes à época –dê um Google, você vai entender.

Claro, Pelé fez muito mais, todos me convenceram. A ponto de me apropriar da memória e até da nostalgia alheias. Ouço um disco com narrações da Copa de 1970 (edição especial da revista "Manchete" achada em um fundo de armário) e me "lembro" das jogadas como se as tivesse assistido ao vivo pela TV. Não vi. Vibro com gols a cores que foram transmitidos em preto e branco.

De modo parecido, você não viu Senna correr mas se emocionou ou vai se emocionar com poles, vitórias, livros, fotos, depoimentos, entrevistas e tudo mais sobre ele que vem sendo despejado nestes dias. Você já foi convencido. Já "lembra" de Mônaco, onde Senna foi sacaneado por Jackie Ickx e, anos depois, colocou 1 segundo e meio em Prost na classificação. De quando pegou a bandeira brasileira em Detroit para levantar o país que chorava a Copa de 1986. Da épica primeira vitória em Interlagos, da espetacular primeira volta em Donington Park.

Poderia me alongar e fazer jus ao papel de geração vidente nesse caso, massacrá-lo com outras tantas memórias. Vi Senna correr e vencer. Vi Senna ser tricampeão, falar de Deus e jogar o carro em cima em um tempo que o país era um fracasso completo, governado por Sarney e Collor, planos econômicos esdrúxulos, dívida externa, inflação nas alturas. Senna foi o grande herói de uma geração perdida. E, como que para confirmar a sina, na hora em que a coisa começa a andar, vem a Tamburello e...

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Xuxa namorou Senna também. Dê um Google e veja a transformação. Viu agora o que é memória transmitida?

Editoria de Arte/Folhapress

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