Folha de S. Paulo


Estadual de Roraima tem atletas com jornada dupla e estádios vazios

O terceiro gol do São Raimundo, marcado aos 47 minutos do segundo tempo, foi comemorado em silêncio pelo lateral Maranhão, 32.

O jogador preferiu não correr atrás de Railson, autor do gol. Exausto, atirou-se no gramado do acanhado Ribeirão, único estádio em Roraima que recebe jogos do estadual. No minuto seguinte, às 20h20 de sábado, ele terminaria sua jornada puxada.

Maranhão acordou às 4h da manhã para trabalhar por cerca de nove horas no forno de uma olaria em Boa Vista antes de ir para a concentração do vice-líder do torneio.

"Jogo porque amo o esporte. Sei que não vou ficar mais rico. Futebol aqui é só para apaixonado", disse o lateral ao deixar o campo mancando, com dores na perna direita, e saudado por alguns torcedores, quase todos parentes ou amigos dos atletas.

Com um salário de R$ 600 mensais no São Raimundo, Maranhão é um dos veteranos do campeonato promovido por Zeca Xaud, 69, o mais antigo presidente de federação do país.

Há 39 anos no poder, o contador comanda a Federação Roraimense de Futebol. Xaud coleciona 11 mandatos ininterruptos e recebe cerca de R$ 700 mil por ano da CBF para administrar o futebol local.

Em 2013, segundo o último balanço, a CBF repassou R$ 27 milhões às federações.

Apesar de administrar um futebol praticamente amador, o cartola estará amanhã na sede da CBF ao lado dos dirigentes dos principais clubes do país na votação de Marco Polo Del Nero. O voto dele tem o mesmo peso de Corinthians ou Flamengo.

Só os 20 clubes da primeira divisão e os 27 presidentes das federações participam da votação. Atletas e árbitros não têm direito ao voto.

Neste ano, Xaud organiza um campeonato que reúne seis clubes, com jogadores que precisam cumprir jornada dupla para viver. O torneio acaba no próximo mês. A partir daí, os clubes entraram em recesso até janeiro de 2015.

"Estou aqui até hoje no cargo porque sou honesto e amigo de todos. Transformo o pouco em muito. Por isso, eles sempre me escolhem", explica Xaud, sobre a sua longa permanência no cargo.

No sábado, ele não foi assistir à rodada dupla do campeonato local. Já havia embarcado para o Rio. Na ocasião, o Rio Negro venceu o Náutico por 2 a 0. Na partida seguinte, com uma iluminação que parecia de boate, o São Raimundo ganhou do Atlético-RR de virada por 3 a 1.

Os jogos foram disputados com portões abertos e não conseguiram atrair mais de 400 torcedores. O interesse é tão pequeno que nenhuma rádio transmite os duelos.

Dentro do campo, não havia médicos. Apenas uma antiga ambulância estacionada na beira do campo. O calorento vestiário, que não tem cadeiras, serve só para os jogadores trocarem o uniforme.

A cerveja, que é proibida no estádios do restante do país, é liberada no Ribeirão.

CIGANOS DA BOLA

"O futebol não é o mais organizado, mas tenho fé que vou crescer aqui", disse o volante Diogo Santana, 25. Ele deixou o Mato Grosso há cerca de um mês para defender o Atlético-RR.

Em parceria com um empresário mineiro, o clube conta com jogadores "ciganos" (que já jogaram em outros Estados e países da periferia da bola) na sua maioria.

Desde o mês passado, cerca de 20 jogadores dividem uma casa abafada em Pintolândia, um dos bairros mais violentos da cidade.

"Se concentração ganhar jogo, vamos ser campeões", brincou o baiano Igor B Love, 26, que divide com dezenas de companheiros um banheiro e uma geladeira, fechada com cadeado pelos dirigentes. O salário médio lá é de cerca de R$ 700, mas o primeiro pagamento já está atrasado em sete dias.

Com uma folha salarial de cerca de R$ 25 mil, o mesmo dos adversários, o Atlético-RR é o maior vencedor do campeonato 20, no total.

Apesar da tradição, o time abriu a competição neste ano com nove jogadores em campo. O goleiro reserva foi escalado no ataque, por causa da dificuldade em contratar.

AMADORISMO

Xaud é encarado pelos torcedores e dirigentes como o principal responsável pelo amadorismo. Mesmo assim, os cartolas preferem não entrar em confronto público com o presidente. Eles temem sofrer perseguição nos jogos.

"Bato muito de frente, mas ele também nos ajuda", disse o presidente do São Raimundo, o policial Sérgio Caranguejo, 52, que se forma no final do ano em teologia.

Há uma semana, ele teve que pedir "R$ 2.500" a Xaud, após o seu time levar um calote em Georgetown, na Guiana. A diretoria não recebeu os US$ 10 mil prometidos após enfrentar o Slingerz.

Presidente do Náutico, atual campeão, o gaúcho Adroir Bassorici, 40, já não tem mais esperanças em mudanças e disse que vai abandonar o esporte, caso não conquiste o bicampeonato.

Por causa da vitória no ano passado, o clube disputou a Copa do Brasil (foi eliminada pelos reservas da Ponte Preta por 4 a 1) e recebeu dos organizadores do torneio cerca de R$ 150 mil pela participação.

"Aqui não tem dinheiro. Na Copa das Confederações, todos se surpreenderam com o amadorismo do Taiti. Na verdade, o Taiti não fica tão longe. É bem aqui", disse Bassorici, na arquibancada vazia enquanto seu time perdia no castigado gramado do Ribeirão.


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