Folha de S. Paulo


Fugir da morte sai caro financeira e emocionalmente, diz dramaturga

Zanone Fraissat/Folhapress
SAO PAULO/SP BRASIL. 25/10/2017 - Dupla exposicao - Retrato da dramaturga Camila Appel sobre o tema morte, (o que voce quer ser quando morrer?) Quem sabe uma arvore) .(foto: Zanone Fraissat/FOLHAPRESS, SAUDE)***EXCLUSIVO***
Camila Appel, dramaturga e autora do blog Morte Sem Tabu, da Folha

É só o assunto "morte" vir à tona para que as pessoas mostrem sinais de desconforto. Talvez o feriado de Finados fuja um pouco à regra, mas, nos demais dias do ano, muitos preferem esconder suas angústias embaixo do tapete e seguir com suas vidas.

Para a dramaturga Camila Appel, a data é uma oportunidade para compreendermos a real dimensão da vida e de que não somos super-heróis que vão viver para sempre. Ela, que desde cedo mostrou interesse pelo assunto, é responsável pelo blog Morte Sem Tabu, no site da Folha.

Por mais doloroso que pareça, conversar e refletir sobre o tema, ela explica, funcionaria como uma espécie de investimento: "ninguém fala sobre o assunto e a falta de informação acaba custando muito caro", seja emocional ou financeiramente.

Para quebrar a espessa camada de gelo que paira sobre o assunto, Appel sugere introduzi-lo em rodas familiares por meio das "malucas opções de destino das cinzas", que podem até mesmo virar fogos de artifício.

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Folha - Por que há tanto tabu quando o assunto é morte?

Camila Appel - Talvez seja um pouco de egocentrismo. No fundo, achamos que somos insubstituíveis, que nossa vida é importante demais para terminar. É a síndrome do super-herói, do Neo do "Matrix". É a necessidade de sermos especiais e necessários para o mundo.

Não adianta fingir que a morte não existe. Mascará-la só piora a qualidade dos serviços prestados por pessoas que trabalham com esse assunto. O resultado são rituais de péssima qualidade, gerando lutos mal resolvidos.

O momento da perda de um familiar traz, hoje, um total desamparo –quase ninguém fala sobre o assunto e a falta de informação acaba custando caro tanto emocionalmente como financeiramente.

O que você diria para as pessoas que se veem em situações de angústia causadas por reflexões acerca da morte?

Escreva sobre isso. Exerça sua autonomia e faça um testamento vital, ou um mandato duradouro. Nele, você pode explicitar a forma como gostaria que seus médicos e familiares encaminhem seu processo de morte, caso não esteja em uma situação propícia para se comunicar. Ou, no caso do mandato duradouro, escolher quem deve tomar as decisões por você.

Converse com seus familiares sobre as malucas opções de destino do cadáver ou das cinzas. O humor facilita muito uma conversa delicada.

Pense em seu legado, escreva seu próprio obituário como um exercício de qual lembrança você gostaria de deixar. Se o resultado for insatisfatório, corra atrás da pessoa que você gostaria de ser lembrada.

Os paliativistas, que costumam acompanhar muitos processos de morte, falam que a essência do ser humano é o amor. Quem não tem pendências ou brigas para resolver, acaba tendo uma morte melhor. Você é dono da sua vida e da sua morte.

Zanone Fraissat/Folhapress
Camila Appel, dramaturga e autora do blog Morte Sem Tabu, da *Folha*
Camila Appel, dramaturga e autora do blog Morte Sem Tabu, da Folha

É preciso desburocratizar a morte e, assim, "suavizá-la"?

A burocracia é produto da falta de informação e de transparência. Quase ninguém sabe, por exemplo, que não existem leis federais para o setor funerário. Cada município regula como quiser. Eu acho que o sistema de Curitiba (PR), de rodizio de funerárias, é muito estranho. A pessoa não pode escolher a funerária que deseja.

Muitos dizem que não se pode mercantilizar a morte, só que ela já é mercantilizada. Quem cuida da pessoa até ela morrer é pago para isso, quem retira o corpo do hospital ou da casa, é pago para isso, quem preparada o corpo para velório é pago para isso. O cemitério ou o crematório recebem para isso. O coveiro recebe para cavar covas.

Não se discute a autonomia do paciente, a forma como ele deseja morrer. O consumidor desse mercado deve poder optar por produtos e serviços e merece ser tratado com respeito, com direitos. Também merece poder escolher dentre as possíveis alternativas existentes. Por exemplo, decidir se ele prefere ser entubado, ou não, se deseja viver às custas de máquinas, ou não...

Também não se discute as opções de destino do corpo. Fora do Brasil, há uma empresa que produz fogos de artifícios com as cinzas, outra, diamante. Tem até disco de vinil com cinzas. Além da quantidade de corpos doados para a ciência, no Brasil, ser mínima.

Como surgiu a chance da você escrever sobre esse assunto?

Sempre tive a necessidade de escrever, o que fazia nas horas vagas do meu trabalho (com microcrédito). Acabei entendendo que, para eu ser feliz, deveria investir naquilo.

Escrevi um livro de ficção científica e passei a estudar dramaturgia. Já encenei duas peças teatrais e tenho outras na gaveta, loucas para tomar vida no palco. Mas eu não consegui sustento com a escrita. Foi quando tive a ideia de tentar um emprego no jornalismo.

Busquei uma oportunidade na Folha e a vaga disponível era para escrever biografias. Elas são uma forma da mídia ter em mãos informações relevantes sobre a pessoa quando ela morrer. Ainda não é um obituário, mas é uma preparação que todos os veículos da imprensa fazem para ter uma homenagem à altura da pessoa, escrita com uma pesquisa profunda e relevante. Eu me apaixonei por essa narrativa.

Depois desse trabalho, passei a investigar o tema da morte e percebi como esse tabu pode ser prejudicial para a sociedade. O tema virou uma missão pessoal. Sugeri ao jornal um blog sobre o assunto. O jornal, que costuma apostar em ideias de vanguarda, me apoiou. Lá se vão três anos e mais de 190 artigos...

Você pensa muito na morte?

Eu penso muito mais na vida, em como as pessoas podem viver melhor até o último minuto.

Mas, outro dia, eu me surpreendi ao perceber que o tabu da morte não está no outro, ele está enraizado em mim mesma.

Eu estava no trânsito, no carro, ouvindo uma estação de música clássica. Quando, de repente, começou a tocar a Marcha Fúnebre, de Chopin. Eu levei um susto. Logo naquele famoso "tan, tan, tantan", minha barriga gelou e eu fui trocar de estação.

Quando eu me dei conta do tabu que eu mesma estava apresentando, respirei fundo e resolvi deixar os sentimentos fluírem. Eu relaxei e descobri uma das músicas mais lindas que eu já ouvi. Uma narrativa emocionante. O medo nos cega para a beleza das coisas. Antes de querer falar com a sociedade sobre o tabu, eu preciso trabalha-lo em mim mesma. E eu estou tentando.

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Raio-x

Nascimento
1º.jun.1981, em São Paulo-SP

Formação
Administração pela FGV (2002), mestrado pela London School of Economics (2005)

Trajetória
Fez curso de dramaturgia na Universidade de Nova York (2009); é autora das peças "A Pantera" e "Véspera". Nantém o blog "Morte sem Tabu", no site da Folha. É redatora do programa "Conversa com Bial", da TV Globo

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O QUE SER QUANDO MORRER?

Possibilidades –algumas só disponíveis no exterior– vão além da cremação e do enterro

Peça anatômica
O corpo é doado para escolas médicas, que permite que o treino tanto de anatomia como de dissecção e cirurgia por estudantes

Ilustrações Carolina Daffara/Editoria de Arte/Folhapress

Enterro
Destino comum do corpo no Ocidente, no qual o cadáver é enterrado. Nessa modalidade, ele pode demorar até décadas para se decompor

Árvore
As cinzas vão em uma urna especial e alimentam uma árvore, que pode ser plantada ou ficar em um vaso. A urna é biodegradável

Criogenia
Algumas empresas como a Alcor, nos EUA, conservam o corpo congelado na esperança de serem revividos (e doenças curadas) um dia no futuro

Plastificação
Uma opção de conservação do corpo é plastificá-lo, permitindo tornar evidente de estruturas importantes da anatomia humana

Mumificação
Ao preço de dezenas de milhares de dólares, uma pessoa pode ser mumificada nos EUA, caso haja desejo de seguir a cultura do Antigo Egito

Cremação/Biocremação
A cremação se propõe a, por meio de altas temperaturas, reduzir o corpo humano a cinzas; a biocremação faz o mesmo, usando reações químicas -emitindo menos CO2

Diamante
Outra possibilidade é transformar as cinzas em diamantes, de modo que uma parte do morto possa sempre ser carregada pelo ente querido em joias

Pintura
A chamada arte pictocrematória usa as cinzas junto a tintas para compor um quadro -de preferência algo que tenha afinidade com o morto e sua família

Cinzas siderais
O sonho de astronauta pode ser realizado postumamente, com parte das cinzas do morto sendo lançadas na superfície lunar ou no espaço profundo


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