Folha de S. Paulo


Doença portuguesa chegou ao Brasil há 500 anos e ainda é desconhecida

Ricardo Borges/Folhapress
 A filha de portugueses Tereza Moura, 64, e seu filho Rafael Martinelli; ambos têm PAF
A filha de portugueses Tereza Moura, 64, e seu filho Rafael Martinelli; ambos têm PAF

Há pouco mais de 500 anos, Portugal vivia o esplendor das grandes navegações. Mas, além do idioma e das fortes influências culturais, o expansionismo lusitano também acabou trazendo para o Brasil uma doença genética rara, progressiva e incurável.

A polineuropatia amiloidótica familiar, mais conhecida pela sigla PAF, chegou ao Brasil junto com os imigrantes –tanto os pioneiros como o das ondas migratórias mais recentes– e, hoje, já há mais brasileiros afetados do que portugueses. Famoso pelos bons vinhos e pela culinária farta, o norte de Portugal é também o principal foco desta doença.

Pesquisadores acreditam que o "berço" da moléstia esteja em algum lugar próximo à pequena cidade de Póvoa de Varzim (a 350 km de Lisboa). Enquanto no resto do mundo trata-se de um problema raro, por lá a PAF não é incomum: chega a afetar 1 em cada 500 habitantes.

Em 1939, quando o médico português Corino de Andrade descreveu a doença pela primeira vez, o paciente em questão era de Póvoa de Varzim.

Hoje se sabe que a PAF tem causa genética. Nos pacientes com a doença, a proteína TTR (transtirretina) tem uma mutação que a deixa instável e a faz com que ela se deposite em vários órgãos, prejudicando seu funcionamento.

Os cientistas já identificaram mais de 130 mutações que podem causar a condição. A mais prevalente no mundo é justamente a mutação dos portugueses (30M), seguida por uma encontrada em populações africanas (122V).

Diferente de muitas doenças mendelianas (causadas por apenas um gene), a PAF é autossômica dominante. Isso significa que basta apenas uma cópia defeituosa do gene com a mutação para que ela se manifeste. Por isso, é bastante comum encontrar famílias inteiras em que várias gerações são afetadas.

A doença é amplamente conhecida entre os médicos de Portugal. O país conta com dois modernos centros de tratamento –no Porto e em Lisboa– e uma rede de diagnóstico e de cuidados.

No Brasil, onde se estima que haja 25 milhões de lusodescendentes, o cenário é bastante diferente. A condição ainda é pouco conhecida até para a classe médica.

Enquanto em Portugal o tempo médio de diagnóstico é de dois anos, no Brasil é cerca de cinco. A demora pode significar mais comprometimento da saúde do paciente.

Os sintomas iniciais podem variar, mas, na versão portuguesa, eles costumam se manifestar primeiro nos membros periféricos. Há perda de sensibilidade, formigamentos e perda de força.

Como esses sintomas são comuns em outras doenças, não é raro que pacientes com PAF recebam diagnósticos incorretos, como o de hanseníase. Depois, surgem sintomas como náuseas, olhos secos e perda acentuada de peso.

DIFICULDADES

"O diagnóstico é difícil porque as pessoas, sejam médicos ou pacientes, simplesmente não conhecem a doença", diz a médica Márcia Cruz, chefe do Centro de Estudos em Paramiloidose Antônio Rodrigues de Mello (Ceparm) do Hospital Universitário da UFRJ.

Criado em 1983, o centro é o único no Brasil totalmente dedicado à PAF. O Rio de Janeiro, até onde os escassos dados da doença no Brasil permitem saber), é o Estado brasileiro mais afetado.

A doença precisa ser identificada por meio de um teste genético –de alto custo na rede particular e de difícil acesso no serviço público. A demora até o resultado, no entanto, pode significar muito para esses pacientes.

A doença costuma manifestar seus primeiros sintomas em torno dos 32 anos para os homens e de 37 anos para as mulheres. Sem tratamento, a degeneração evolui rapidamente e o paciente pode morrer em dez anos.

Ainda não existe cura para a paramiloisose, mas já há opções terapêuticas. O único medicamento já aprovado para combater a PAF é o tafamidis, que age estabilizando a proteína transtirretina. A droga não faz com que os sintomas adquiridos regridam, mas desacelera a progressão natural da doença.

O medicamento só tem efeito comprovado nos estágios iniciais, quando o comprometimento motor e dos órgãos ainda é moderado. Em estágios avançados, a única opção é o transplante de fígado, onde a maior parte da transtirretina é produzida.

A médica Márcia Cruz explica que, uma vez feito o diagnóstico da mutação causadora da PAF, o paciente é monitorado e só deve tomar o remédio quando os sintomas têm início. "O Brasil já é considerado hoje uma região endêmica, como Portugal", diz.
Acredita-se que haja cerca de 5.000 casos no país.

REMÉDIO CARO

Filha de portugueses, Tereza Moura, 64, sabe há 11 anos que tem PAF, doença que atingiu vários membros de sua família e que já causou a morte de um irmão. A dona de casa já perdeu a sensibilidade dos pés e briga na Justiça para conseguir acesso ao medicamento.

"Até agora, só consegui nove caixas. O uso foi interrompido."

Seu filho, o empresário Rafael Martinelli, 35, que também tem PAF, também aguarda o recebimento do medicamento.
Amante de atividades físicas intensas, ele diz que precisou abandonar essas modalidades devido aos efeitos da doença, como a fadiga e a perda de força muscular.

Martinelli e a mulher planejam ter filhos, mas vão recorrer ao método de diagnóstico pré-implantação, para garantir que o embrião não seja portador da doença. "É difícil, mas eu tenho muito apoio da família. Estamos nessa juntos."

Única opção de tratamento aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a PAF, o tafamidis (Vyndaqel, da Pfizer) é caro. Por mês, gastam-se cerca de R$ 21 mil.

"Quando se fala em investigar uma doença como essa, nós temos um investimento inicial muito grande, com a possibilidade de, muitas vezes, não dar certo", diz Eurico Correia, diretor clínico da Pfizer no Brasil.

O diretor clínico afirma, no entanto, que o tafamidis não é direcionado para ser comprado pelo consumidor final.
No Brasil, porém, pacientes que queiram ter acesso rápido à droga precisam, sim, gastar um bom dinheiro.

Embora o tafamidis tenha sido aprovado há cinco anos na Europa e nos EUA, ele só foi liberado pela Anvisa no final de 2016 e foi lançado oficialmente no país em março.

Ainda está em discussão se o medicamento será ou não incorporado ao rol dos que são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

A jornalista GIULIANA MIRANDA viajou a convite da Pfizer


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