Folha de S. Paulo


Medicina de família reduz mortes evitáveis na população negra

Eduardo Knapp/Folhapress
Adelaide de Oliveira, 64, é acompanhada pela Estratégia Saúde da Família há dois anos
Adelaide de Oliveira, 64, é acompanhada pela Estratégia Saúde da Família há dois anos

Em pouco mais de uma década, a expansão do programa Estratégia de Saúde da Família (ESF) no Brasil conseguiu uma redução duas vezes maior na mortalidade por causas evitáveis entre as populações negras ou pardas em comparação às brancas.

Entre os brancos, a diminuição do índice das chamadas mortes por condições sensíveis à atenção primária –como doenças cardiovasculares, anemia e diabetes– foi de 6,8%, enquanto que entre negros e pardos, de 15,4%.

Os resultados são de um estudo liderado por pesquisadores do Imperial College London, em colaboração com o centro de integração de dados da Fiocruz (Cidacs). O trabalho avaliou o impacto do ESF em 1.622 municípios (de um total de 5.565), entre 2000 e 2013. A seleção levou em conta locais com dados adequados de estatísticas vitais.

Pesquisas anteriores já haviam demonstrado que a expansão da atenção primária tem impacto na redução de mortes infantis, doenças cardiovasculares e infecciosas, mas a associação com as iniquidades raciais em saúde ainda é pouco estudada.

Implantado oficialmente em 1994, o programa de saúda família brasileiro é o maior do mundo. Atende hoje cerca de 63% da população.

O estudo, publicado no periódico científico "PLoS Medicine", observou uma redução de 27,5% na mortalidade por doenças infecciosas e de 19,3% de diabetes na população negra/parda, além de diminuição de 17,9% nas mortes por deficiências nutricionais e anemia nas crianças menores de cinco anos.

Umas das hipóteses é que a queda esteja ligada a um maior acesso a cuidados médicos, prevenção e promoção da saúde. O ESF tem diretrizes federais que especificam áreas estratégicas a serem atacadas, como hipertensão, diabetes, tuberculose e saúde de mulheres e crianças.

Segundo o médico Thiago Trindade, presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), a pesquisa traz uma robustez maior pelo tempo e tamanho da amostra.

"Mostra-nos o quanto se poderia ganhar em impacto se tivéssemos uma cobertura universal, saindo dos atuais 60-65% para 100%, e dando qualidade necessária a todas as equipes existentes, em disponibilidade de insumos e de tecnologia de informação."

Hoje, há muitas disparidades entre as equipes de saúde da família no país. Enquanto algumas fazem, além de consultas, até pequenos procedimentos (como colocação e retirada de DIUs ), outras não têm mais do que papel e caneta à disposição.

Para Thomas Hone, pesquisador do departamento de cuidados primários e saúde pública do Imperial College, as descobertas sugerem que, se expandida a cobertura da ESF, as disparidades raciais devem diminuir ainda mais.

"As evidências também mostram que o ESF reduz as internações e isso, provavelmente, diminuirá os custos para o SUS no longo prazo", disse ele à Folha.

Segundo Hone, outra vantagem é o fato de o programa não ser caro (se comparado aos serviços hospitalares). A estimativa é que custe cerca de US$ 90 (cerca de R$ 300) por pessoa por ano.

"Dado o número de vidas salvas e as melhorias na saúde e no bem-estar, não podemos ver nenhum cenário onde seja sábio ou rentável a longo prazo reduzir o investimento no programa."

Segundo Mauricio Barreto, um dos coordenadores brasileiros do estudo, com as políticas de austeridade adotadas pelo governo federal, há possibilidade de redução de gastos para a saúde e para as políticas sociais.

"Pode ter efeitos danosos e reverter as tendências consistentes de melhoria dos padrões de saúde da nossa população." O Ministério da Saúde nega que haverá cortes.

Hoje, parte dos recursos federais que as prefeituras recebem para investimentos em saúde está atrelada à quantidade de equipes de ESF que mantêm em seus municípios.

Segundo Gustavo Gusso, médico de família e professor da USP, há uma discussão para desvincular isso, ficando a critério dos prefeitos seguir investindo ou não no ESF.

"Estamos em um momento delicadíssimo. Muitos prefeitos não enxergam a importância do ESF. Preferem investir em ambulâncias."

INIQUIDADES

Mesmo com a redução apontada no estudo, a taxa de mortalidade evitável entre negros e pardos ainda é 23% superior à verificada entre os brancos, o que, para os pesquisadores, se traduz numa das maiores iniquidades.

Embora sejam a maioria no Brasil (54%), pouco mais de um terço (36%) da população negra ou parda tem acesso a planos de saúde, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

São várias as diferenças socioeconômicas. Além possuírem maiores taxas de analfabetismo e menor renda, têm têm menor expectativa de vida, são mais afetados por doenças infecciosas (tuberculose, hanseníase, leishmaniose, entre outras), desnutrição e anemia, além de morrerem mais de causas violentas.

DIABETES

Quando descobriu há dois anos que era diabética, Adelaide de Oliveira, 64, entrou em desespero.

"É uma coisa que a gente nunca pensa que vai acontecer. Tinha muita aflição das 'injeçõeszinhas'."

Ela é acompanhada por uma equipe do ESF (Estratégia de Saúde da Família) da Vila Dalva, zona leste de São Paulo. À época, além do alto índice glicêmico, também teve diagnóstico de depressão.

"Minha vida estava muito ruim. Era mal-estar, tontura, dor de cabeça e muita tristeza. Quando tive que começar a me picar [tomar insulina], tudo piorou. Achei que não ia ter mais jeito para mim."

Mas teve. A equipe de ESF se mobilizou, e, além das consultas de rotina na unidade de saúde, médico e agentes de saúde foram até sua casa entender como era sua dieta e sugeriram mudanças.

"Comia muita farinha, muito arroz e tudo era frito com muito óleo. Agora só uso duas colheres rasas. E passei a comer mais verduras", diz.

Com os níveis de glicemia controlados, em oito meses ela se livrou da insulina e hoje só toma uma medicação oral. Também já foi liberada do uso de antidepressivos.

No momento mais crítico da doença, até uma psicóloga foi visitá-la em casa. "Me senti muito bem cuidada. Nunca tinha visto isso."

Mãe de sete filhos, avó de 15 netos, ela lamenta não ter tido uma família maior. "Eu queria mesmo era ter tido dez [filhos]. Mas o médico me cortou [fez laqueadura ] quando eu tinha 30 anos", conta.

Adelaide se casou aos 14 anos, com um homem 30 anos mais velho, "por vontade própria", como faz questão de frisar. "Vivemos muito bem durante 25 anos até a morte dele, de derrame."


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