Folha de S. Paulo


Muita gente toma suplemento de vitamina D; talvez você não precise

Craig Frazier/The New York Times
Segundo indicações médicas, somente populações de risco devem se preocupar com a vitamina D
Segundo indicações médicas, somente populações de risco devem se preocupar com a vitamina D

Não havia razão para os pacientes fazerem exames de vitamina D. Eles não tinham osteoporose; seus ossos não estavam rachando por falta da vitamina. Eles não apresentavam doenças que interferem na absorção de vitamina D.

No entanto, em uma amostra recente de 800 mil pacientes no Estado do Maine, nos EUA, quase um em cinco tinha feito pelo menos um exame em um período de três anos para verificar o nível da vitamina em seu sangue. Mais de um terço dos pacientes fez dois ou mais exames, em muitos casos para avaliar queixas difusas como mal-estar ou fadiga.

As pesquisadoras que colheram esses dados, Kathleen Fairfield e Kim Murray, do Maine Medical Center, ficaram surpresas. Talvez não devessem ter ficado

Milhões de pessoas andam tomando suplementos de vitamina D, acreditando que a vitamina é capaz de reverter a depressão, fadiga, fraqueza muscular, até doenças cardíacas ou câncer. Na realidade, nunca houve evidências amplamente aceitas de que a vitamina D ajude a prevenir ou tratar qualquer dessas condições.

Mas essa ideia é tão enraizada que a vitamina D passou a ser tomada amplamente mesmo por pessoas que não apresentam problemas médicos específicos nem correm o risco de contrair doenças. E pacientes em número crescente são testados para averiguar se sofrem de "deficiência de vitamina D".

O número de exames de vitamina D aplicados a beneficiários do Medicaid, pessoas de 65 anos ou mais, aumentou 83% entre 2000 e 2010, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças. Entre os pacientes que têm planos de saúde particulares, a parcela dos que fazem exames de vitamina D se multiplicou por 2,5 entre 2009 e 2014.

Os laboratórios que realizam esses exames descrevem níveis de vitamina D perfeitamente normais –entre 20 e 30 nanogramas por mililitro de sangue– como sendo "insuficientes". Graças a isso, milhões de pessoas saudáveis acham que têm uma deficiência, e algumas tomam doses extras tão altas que podem ser perigosas, provocando perda de apetite, náusea e vômitos.

O consumo de vitamina D em excesso também pode provocar fraqueza, urinação frequente e problemas renais.

"Muitos clínicos estão agindo como se houvesse uma pandemia de deficiência de vitamina D", disse JoAnn E. Manson, pesquisadora de medicina preventiva no Hospital Brigham and Women's, em Boston, e coautora do relatório sobre vitamina D do Instituto de Medicina.

"Com isso eles podem justificar o fato de estarem pedindo exames a todo o mundo e receitando a seus pacientes um nível de vitamina D bastante superior ao recomendado pelo Instituto de Medicina."

Na realidade, o comitê do instituto do qual Manson fazia parte concluiu em 2010 que pouquíssimas pessoas apresentam deficiência de vitamina D e notou que ensaios randomizados não constataram nenhum benefício especial para pessoas saudáveis por possuírem níveis de vitamina D superiores a 20 nanogramas por mililitro de sangue.

Organizações médicas também já concluíram repetidas vezes que não existe razão para avaliar os níveis de vitamina D de adultos saudáveis, e dois estudos rigorosos recentes não encontraram nenhuma ligação entre níveis altos de vitamina D e proteção contra doenças cardíacas ou câncer.

"A Sociedade Brasileira de Endocrinologia diz que, de fato, há alguns estudos que relacionam vitamina D à possível patogênese dessas doenças, mas que ainda são estudos observacionais. Não podemos dizer com certeza se existe essa relação. Ela é importante principalmente por ser um hormônio que age no metabolismo ósseo", diz Teresa Bonansea, endocrinologista e assessora médica em densitometria óssea do Fleury Medicina e Saúde.

Mesmo assim, a vitamina D virou praticamente "uma religião", disse Clifford J. Rosen, que pesquisa a osteoporose no Maine Medical Center Research Institute e é membro do comitê do Instituto de Medicina.

"É quase uma epidemia. A maioria das pessoas tem deficiência de vitamina D, mas a recomendação da sociedade brasileira é que essa dosagem seja feita em indivíduos da população de risco, como pessoas que já fizeram cirurgia bariátrica, quem já tem osteoporose, idosos com histórico de queda e fratura, obesos e grávidas", diz Bonansea.

PRODUZIDA SOB A LUZ SOLAR

A vitamina D é um nutriente lipossolúvel necessário para a absorção de cálcio e fósforo, logo, para fortalecer os ossos. As pessoas não produzem sua própria vitamina D: precisamos da luz do Sol para sintetizá-la. A vitamina também é encontrada em peixes gordurosos e alguns poucos outros alimentos, incluindo o leite, que é fortificado com a vitamina.

Pelo fato de que muitas pessoas têm pouca exposição ao sol, especialmente as que vivem no norte do planeta durante o inverno, alguns pesquisadores, mais de uma década atrás, recearam que grandes parcelas da população não estivessem recebendo vitamina D suficiente.

Um desses pesquisadores é Michael F. Holick, professor de medicina, fisiologia e biofísica na Escola de Medicina da Universidade de Boston e um dos principais proponentes da ideia de que praticamente todo o mundo precisa tomar suplementos de vitamina D.

Holick aponta para estudos que sugerem um vínculo entre níveis baixos de vitamina D e incidência aumentada de várias doenças. Embora esses relatos observacionais não comprovem causa e efeito, Holick se convenceu da existência de causa e efeito porque muitos estudos apontam na mesma direção, dando a entender que níveis baixos de vitamina D no sangue encerrariam riscos.

Ele acredita que os médicos precisam entrar em ação.

A dose diária recomenda é de 600 unidades internacionais (UI) para pessoas até 70 anos e 800 UI para pessoas com mais de 70, disse Holick.

Ele observa que a alimentação não consegue prover boa parte dessa dose. E seria necessária uma exposição quase constante ao sol para alcançar os níveis de vitamina D que ele recomenda.

Holick reconhece que ao longo dos anos, estudos em que indivíduos foram designados aleatoriamente para tomar comprimidos de vitamina D ou um placebo não confirmaram as afirmações sobre os benefícios da vitamina. Mas, para ele, os estudos foram demasiado pequenos para serem definitivos.

Entretanto, ensaios mais recentes, maiores e rigorosos tampouco produziram os resultados esperados.

Um estudo com 5.108 participantes publicado este mês no "Jama Cardiology" concluiu que a vitamina D não previne ataques cardíacos.

Um estudo publicado no final de março incluiu 2.303 mulheres saudáveis na pós-menopausa escolhidas aleatoriamente para tomar suplementos de vitamina D e cálcio ou um placebo. Os pesquisadores concluíram que os suplementos não protegeram as mulheres contra câncer.

Outros estudos mais ambiciosos estão em curso, incluindo um estudo randomizado com quase 26 mil homens e mulheres saudáveis, dirigido por Manson e Julie Buring, que espera poder responder de uma vez por todas se a ingestão de vitamina D em suplementos pode prevenir o câncer, doenças cardíacas e acidentes vasculares cerebrais.

UMA SUCESSÃO DE ESTUDOS

A mania dos suplementos de vitamina D começou não em lojas de alimentos naturais, mas em periódicos médicos. A partir do ano 2000, mais ou menos, uma série de estudos vinculou níveis de vitamina D mais baixos, mas vistos como normais, à esclerose múltipla e a doenças mentais, e, mais tarde, ao risco de câncer e problemas de saúde óssea.

Craig Frazier/The New York Times
A mania da vitamina D surgiu em periódicos médicos
A mania da vitamina D surgiu em periódicos médicos

Foi quando os exames de sangue para verificar níveis de vitamina D decolaram para valer. "Os pacientes começaram a pedir os exames", explicou Kathleen Fairfield, a pesquisadora do Maine. "Muitas pessoas pensavam que, se estivessem fatigadas, tristes ou não se sentissem bem, talvez tivessem deficiência de vitamina D."

Em 2007 Holick publicou um artigo no "New England Journal of Medicine" afirmando que níveis de vitamina D hoje vistos como normais –entre 21 e 29 nanogramas por mililitro de sangue– eram ligados a um risco aumentado de câncer, doenças autoimunes, diabetes, esquizofrenia, depressão, baixa capacidade pulmonar e chiado ao respirar.

Ele também publicou livros promovendo a ideia de que níveis de vitamina D nessa região são insuficientes para promover a boa saúde.

Em 2011 um comitê da Sociedade de Endocrinologia, chefiado por Holick, lançou a recomendação de que o nível de vitamina D deve ser de pelo menos 30 nanogramas por mililitro de sangue, o que significaria que a maioria das pessoas teria deficiência de vitamina D.

O grupo recomendou a adoção de suplementos, mas não a realização de exames amplos, alegando o custo alto deles.

A nova orientação teve efeito imediato: laboratórios comerciais começaram a descrever níveis de 20 a 30 nanogramas por mililitro como insuficientes. Muitos continuam a fazê-lo até hoje.

Sundeep Khosla, especialista em osteoporose na Clínica Mayo, disse que houve um "festival de vitamina D" e que os exames de vitamina D "passaram a ser incorporados à avaliação geral de pacientes".

Ravinder Singh, diretor de um laboratório de análises clínicas da Clínica Mayo, se surpreendeu com a onda repentina. "A demanda por exames de vitamina D explodiu", ele comentou. "De repente, era quase como se não houvesse nada mais sério na prática clínica."

Como muitos outros clínicos gerais, Fairfield começou a pedir exames a seus pacientes, tentando garantir que elevassem seus níveis de vitamina D para acima de 29 e receando que ela e outros médicos não tivessem dado a devida importância à questão.

Mas, quando o estudo do Instituto de Medicina criticou a mania de vitamina D, ela começou a dizer a seus pacientes saudáveis que não havia razão para serem testados. Muitos não quiseram dar ouvidos ao conselho.

"As pessoas já estavam acostumadas a monitorar sua vitamina D, como fazem com o colesterol", disse Fairfield. "Queriam saber qual era seu nível."

Fairfield parou de pedir exames de rotina de vitamina D a seus pacientes, mas muitos outros médicos, não.

Becky Rosen, 64 anos, enfermeira que é diretora de serviços clínicos numa agência de saúde a domicílio em Brunswick, no Estado do Maine, nos EUA, passou por um check-up físico quatro anos atrás e ouviu que precisava fazer um exame de vitamina D. Ela não fez o exame.

Os exames seguintes foram em fevereiro, com outro médico. Mais uma vez o médico queria que ela verificasse seu nível de vitamina D.

"Falei: 'Acho que não preciso disso'", falou Rosen. O médico insistiu, observando que o Maine fica tão ao norte que as pessoas podem não ser expostas a muita luz do sol. Rosen recusou mesmo assim.

Mas ela é uma paciente especial: seu marido, Clifford Rosen, ajudou a redigir o estudo do Instituto de Medicina que criticou a suplementação de vitamina D.

"Vejo outras pessoas sendo persuadidas", ela comentou.

Tradução de Clara Allain


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