Folha de S. Paulo


Doença rara e progressiva faz homem repensar a morte

Adriano Vizoni/Folhapress
Michele Lebani, 80, possui uma doença chamada fibrose pulmonar idiopática
Michele Lebani, 80, possui uma doença chamada fibrose pulmonar idiopática

Há pouco mais de cinco anos, quando o ítalo-brasileiro Michele Lebani, 80, caminhava em um parque, surgiu a falta de ar. Segundo o primeiro médico que visitou, não era nada sério. O problema era que a ausência do ar não passava. De certo modo, até hoje não passou.

Lebani nasceu na bela Costa Amalfitana, na região de Salerno, na Itália. Em 1952, aos 15 anos, veio com a família para o Brasil. Ano passado ele completou 50 anos de casado com sua mulher, Neide, mas as comemorações foram suspensas por causa de uma nova companheira que deve estar presente por toda a vida.

Ele tem uma doença conhecida como fibrose pulmonar idiopática. Trata-se de uma condição em que a parte do pulmão responsável por fazer as trocas gasosas entre sangue e o ar inspirado acaba sendo reduzida, ao ser substituída por um tecido fibroso, como se fosse uma cicatriz, inerte e sem função.

"Idiopática" porque não se sabe a origem da doença. "E quando é assim, é o pior prognóstico", diz o pneumologista Carlos Pereira, da Universidade Federal de São Paulo, que atende Lebani. "Após o diagnóstico, a expectativa de vida é de três a quatro anos".

O tempo é curto também porque o diagnóstico definitivo demora a acontecer. No caso de Lebani foram quase dois anos. Em 70% dos casos dá pra bater o martelo só com a exames de imagem (radiografia e tomografia). Nos demais, só com uma biópsia.

A chave para o diagnóstico, afirma o médico, é o som produzido pelos "estertores em velcro", no jargão da área, uma assinatura da doença. Segundo ele, 90% dos casos podem ser identificados dessa maneira. Ele avalia que muitos médicos generalistas e até especialistas não sabem identificar corretamente a fibrose pulmonar idiopática.

Existem alguns possíveis gatilhos para a doença: quem fuma tem maior risco, assim como quem tem refluxo gastroesofágico (a entrada do material gástrico nas vias aéreas pode desencadear o processo). Também há o risco de infecções virais iniciarem o problema, afirma Pereira.

Os sintomas aparecem de repente e são facilmente confundidos com outras doenças pulmonares (como tuberculose) e com doenças cardíacas. Além da falta de ar progressiva, podem surgir tosse e irritação nas vias aéreas.

Após chegar ao Brasil, Lebani trabalhou em um depósito de material para construção, em serralheria e como metalúrgico. Depois virou empresário, atuando na área de loteamentos e construção civil. Ele foi fisicamente ativo por toda a vida e não esperava que uma doença assim pudesse acometê-lo.

O empresário já tinha tido uma experiência marcante em relação à sua saúde, quando teve de tirar o que parecia ser o começo de um câncer na garganta. A remoção do tumor levou junto um pedaço de uma prega vocal, deixando sua voz rouca.

Desafiou a sorte também outras vezes: uma vez foi atropelado por um caminhão, outra por um ônibus e em três ocasiões foi ameaçado com armas de fogo em tentativas de roubo, relata à reportagem.

"Após o diagnóstico da fibrose pulmonar, não me apavorei. Tentei pensar da mesma forma de quando fui operar a garganta: ainda bem que descobri a tempo", diz.

Com a doença, a capacidade pulmonar, ou seja, a quantidade de ar que cabe no órgão, é reduzida. No caso de Lebani, essa capacidade está atualmente em 50% -o suficiente para as atividades diárias dentro de casa, para dirigir e para trabalhar em seu escritório, no centro de São Paulo. "Quando tenho algo para fazer, eu nem penso na doença. É como se ela não existisse".

Em um futuro não muito distante, pode ser que Lebani tenha de utilizar cilindros de oxigênio para garantir que o organismo receba a quantidade adequada do gás. "O melhor dos cenários é a não progressão -não há recuperação da função perdida", afirma o pneumologista.

"Prefiro pensar na vida como um tanque de gasolina. Na largada alguns têm combustível para viver 100 anos, outros têm 50 e outros menos ainda. O que interessa é você viver bem com tudo que o seu tanque te permite", diz Lebani. "Quando chega a hora, você não escapa, então não adianta se preocupar com o que vai acontecer. Se todos soubessem a hora que vão morrer, ficariam malucos."

"Se eu tiver que usar um balão de oxigênio, fazer o quê? Eu uso. Mas talvez eu não tenha motivação para sair de casa." Ele foi à Espanha e viu a seleção italiana ganhar a Copa do Mundo de 1982 e viajou para várias cidades europeias, mas hoje conta ter perdido a vontade de viajar. "Não quero conhecer mais nada. Acho que só a Sicília, na Itália".

A doença, progressiva, parou de evoluir em Lebani, após uso de um novo remédio à base de esilato de nintedanibe (vendido com o nome de Ofev, da farmacêutica alemã Boehringer Ingelheim). A droga atua inibindo a proliferação e movimento dos fibroblastos, células que, ao se alojarem no pulmão causam a fibrose.

Estima-se que no Brasil mais de 15 mil pessoas sofram com a doença, a grande maioria ainda não diagnosticada.

"O que as sociedades médicas e associações de pacientes querem é a incorporação do medicamento na lista de medicamentos de alto custo do SUS", diz Pereira. A um custo que pode superar R$ 13 mil ao mês, a judicialização para o acesso à droga, como costuma acontecer com novas drogas lançadas, é o principal recurso dos pacientes que querem ter essa possibilidade.


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