Folha de S. Paulo


Superproteger não garante segurança e prejudica independência de crianças

Keiny Andrade/Folhapress
Andrea Attanasio Ramos com os dois filhos, Antonio de 5 e João de 9 anos
Andrea Attanasio Ramos com os dois filhos, Antonio de 5 e João de 9 anos

Um vídeo que mostra um menino de seis anos sendo levado por um desconhecido, na av. Paulista, deixou pais com os nervos à flor da pele na última semana e levantou dúvidas sobre o equilíbrio entre os cuidados necessários com as crianças nas grandes cidades e a importância do estímulo à autonomia.

O episódio, ocorrido no domingo (23), teve final feliz porque o pai flagrou a tentativa de rapto enquanto filmava uma apresentação musical. Três dias depois, o homem, de 52 anos, foi detido em uma unidade de saúde na zona norte da capital paulista.

Segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, Rubens Santos da Silva já havia sido internado num hospital psiquiátrico em 2008, após uma tentativa de invasão do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual.
Um texto sobre o quase rapto, escrito pela mãe do garoto, a publicitária Juliana Nunes, 41, foi compartilhado nas redes sociais e gerou não só mensagens de apoio mas também muitas críticas aos pais, acusados de não cuidarem direito do menino.

Juliana deixou o filho ir avisar ao pai, o designer Matheus Pellegrini, 39, que os dois iriam até uma banca de jornal. O espaço entre a criança e Pellegrini era de cinco metros. "Levi sabia onde o pai estava, não ia se perder. Fiquei na calçada com o cachorro. Em menos de cinco segundos, um cara o catou pelo braço", disse.

CERCO

A psicóloga Rosely Sayão conta que se surpreendeu com a reação ao caso, porque a mãe agiu corretamente, e a cena não é motivo para pânico. "Se os pais estão atentos, como estavam, o máximo que pode acontecer é isso: eles percebem e pegam a criança de volta. Ou de agora em diante a criança não vai poder mais andar dois ou três metros sozinha?", questiona.

Segundo Rosely, após casos de grande repercussão como esse é comum que os pais "apertem o cerco" e restrinjam ainda mais o pouco contato que os filhos têm com o espaço público, com consequências negativas para o desenvolvimento da autonomia.

"Quando chegarem à adolescência, eles vão sair, ainda que escondidos. E não vão saber usar o espaço público, porque não conhecem o mundo em que vivem", alerta.

Isabel Marin, psicanalista e professora da PUC-SP, concorda. Para ela, há muitos pais que moram em condomínios, só frequentam shoppings e clubes e preferem que o filho brinque no tablet porque assim estariam a salvo da violência, mas, com isso, deixam de ensinar lições importantes.

"O melhor caminho é dar as referências sobre como andar pela cidade, como se relacionar com desconhecidos, e que não necessariamente são inimigos. Isso se dá quando os pais se dispõem a ter o trabalho de viver isso ao vivo, em vez de se restringirem a espaços de conforto."

Segundo a psicanalista, pais amedrontados ou acomodados superprotegem em vez de preparar os filhos para a vida. "Há pais que se poupam de se preocupar com o filho porque isso dá trabalho", aponta.

Preocupada com a violência, a publicitária Andrea Attanasio Ramos, 40, mãe de dois meninos, de cinco e nove anos de idade, reconhece que evita programas para não correr riscos. "Em vez de ir ao teatro no centro, vou no do shopping, um lugar mais fechado. Acabo limitando passeios por conta do medo, embora eu saiba que é errado."

"Sei que tenho que dar autonomia para eles amadurecerem, porque um dia eles vão ter que ir à padaria sozinhos e até tomar decisões profissionais mais tarde na vida."

Já a administradora de empresas Katia Perlman, 40, mãe de gêmeos de 12 anos, acredita que o primeiro ponto a se considerar em busca de equilíbrio é ter consciência de que o medo pode fazer com que os pais criem crianças dependentes demais.

"Eu tenho mais medo é de eles não saberem se virar sozinhos", conta.

SEM MANUAL

É bom lembrar que não existe idade ideal para que as crianças comecem a dar os primeiros passos sozinhos, como ir à padaria perto de casa. Mas aquelas que já tiveram essa experiência com os pais podem enfrentar esses pequenos desafios a partir dos sete ou oito anos, diz Isabel.

Para Juliana Nunes, o quase rapto do filho ensinou uma lição importante: não basta dizer às crianças como se proteger dos perigos do mundo, é preciso estar sempre atento.

"Eu sempre falo para ele gritar se alguém encostar nele, e ele não gritou. Hoje eu imagino que as crianças pensam que bandido tem cara de vilão de desenho, é mascarado, não um cara comum", disse à Folha. "Na hora ele não entendeu o que aconteceu. Depois, disse que esqueceu de gritar e que não sabia que o homem era mau. Foi muito rápido."

Juliana diz, no entanto, que pretende continuar criando o filho livre, na medida do possível. "Não vou deixar de sair, de ir ao parque, de passear e de lhe dar essa autonomia. Na hora me senti culpada, mas depois percebi que não fiz nada de errado."

Não mesmo. "Com seis anos, a criança não vai associar o que ouve dos pais [sobre os riscos] com a realidade", diz Rosely Sayão. Ela lembra que, na primeira infância, o olhar da criança para o mundo é diferente daquele do adulto: onde os pais veem risco, ela vê investigação e exploração.

"Uma criança de nove ou dez anos tem condições de identificar algo estranho, mas uma mais nova, não."


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