Folha de S. Paulo


Estudo de processo de reciclagem em células rende Nobel a japonês

Akiko Matsushita/Associated Press
O japonês Yoshinori Ohsumi foi o escolhido por causa de sua pesquisa sobre os mecanismos da autofagia
Yoshinori Ohsumi foi o escolhido por causa de sua pesquisa sobre os mecanismos da autofagia

O Nobel de fisiologia ou medicina deste ano foi para uma área bastante fundamental da ciência biológica. O japonês Yoshinori Ohsumi, 71, foi o escolhido de 2016 por causa de sua pesquisa sobre como a autofagia realmente funciona.

Trata-se uma função ligada ao reaproveitamento do "lixo celular" e também ligada a doenças. A falha do processo faz com que a célula não consiga se livrar de partes problemáticas, causando seu acúmulo e favorecendo o aparecimento de doenças como diabetes e câncer.

Etimologicamente, autofagia significa "comer a si próprio" e o conceito surgiu durante as décadas de 1950 e 60. O processo está intimamente relacionado à organela conhecida como lisossomo –já velha conhecida dos livros de biologia.

O belga Christian de Duve (1917-2013) ganhou o mesmo Nobel, em 1974, pela descoberta do lisossomo. Restava saber, no entanto, como era a estratégia da célula para fazer o "carregamento" de lixo celular chegar até a organela.

Os cientistas já haviam observado que outros compartimentos celulares (que passaram a ser denominados autofagossomos) tinham aparentemente uma rota certa até encontrarem o lisossomo. O problema era entender como isso funcionava.

Aí entra a grande sacada do japonês, que traçou uma estratégia que permitiu o estudo do mecanismo de autofagia em levedura –organismos unicelulares do reino dos fungos fáceis de se manter em laboratório.

Ele conseguiu produzir leveduras mutantes que não conseguiam completar o processo de reaproveitamento do material celular, o que ajudou no estudo da autofagia. O trabalho foi publicado em 1993 e desde então o volume de trabalhos da área aumentou em várias ordens de grandeza. "Antes se pensava que esse mecanismo era 'desregulado', carente de algum controle celular", diz Rubem Sadok Menna-Barreto, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.

A autofagia pode ser usada pela célula para prover energia rapidamente para alguma demanda interna ou externa e também para fornecer "peças" para a construção de outras proteínas e componentes que sejam mais necessários do que a parte descartada ou defeituosa. O mecanismo, finamente controlado por 15 genes, também é importante na resposta à falta de nutrientes e outras condições de estresse.

Jonathan Nackstrand/AFP
Telão mostra imagem do japonês Yoshinori Ohsumi, que ganhou nesta segunda o Nobel de Medicina
Telão mostra imagem do japonês Yoshinori Ohsumi, que ganhou nesta segunda o Nobel de medicina

Além de identificar esses genes, Ohsumi conseguiu caracterizar cada estágio da autofagia, desde a formação e a fusão de vesículas até o desfecho do processo, com a renovação dos componentes.

INFECÇÃO E CÂNCER

A autofagia também acontece, por exemplo, quando é necessário eliminar vírus, bactérias e outros micróbios em uma infecção.

Menna-Barreto atua nessa linha de pesquisa, estudando os mecanismos de autofagia na doença de Chagas e na leishmaniose, doenças negligenciadas prevalentes no Brasil. A proposta dele e de seu grupo é estudar o mecanismo tanto nos patógenos (protozoários) quanto no hospedeiro (células de mamífero).

Conseguir ativar no momento certo a resposta autofágica tanto em um quanto em outro pode ajudar a combater as doenças, afirma Mena-Barreto. "Nossa ideia é ver se a via molecular pela qual acontece a autofagia é semelhante com aquela descrita por Ohsumi em leveduras."

A desregulação de algum dos 15 genes envolvidos também pode fazer com que haja outras consequências negativas para o organismo. Por exemplo, o mal de Parkinson e o diabetes tipo 2, além de outras doenças ligadas ao envelhecimento estão associadas à falhas na autofagia.

Outra implicação do mau funcionamento do processo é o aparecimento de câncer. Já existem pesquisas de drogas e outras estratégias que têm como alvo elementos do processo autofágico para combater a doença.

Uma dessas pesquisas é a do pesquisador da UFRGS Guido Lenz, que estuda autofagia em casos de câncer. Para ele, a coisa não é tão simples assim. "A autofagia tem uma resposta dual, pode ser boa em alguns casos e ruim em outros. Ela parece ser um dos mecanismos que elimina as células tumorais no surgimento do câncer, mas que, em fases avançadas [quando o tumor deixa de se alimentar de nutrientes do sangue], ela acaba sendo um mecanismo de sobrevivência".

"Quase todo tratamento de câncer com quimioterápicos induz a autofagia –que faz parte da resposta de estresse da célula. Mas não se sabe ainda se é melhor forçar a célula a fazer mais autofagia ou a bloquear esse processo."

Lenz estuda possíveis estratégias para escolher a hora certa de ativar ou bloquear a autofagia no câncer.

ESCOLHA

A escolha do vencedor do mais importante prêmio da área é realizada por um grupo de 50 pesquisadores ligados ao Instituto Karolinska, na Suécia, escolhido por Alfred Nobel em seu testamento para eleger aquele que tenha feito notáveis contribuições ao futuro da humanidade para receber a láurea.

Segundo Menna-Barreto e Lenz, já se cogitava que a autofagia poderia ser a área que ganharia um Nobel -e ninguém melhor que Ohsumi para recebê-lo.

A reunião que define os vencedores da láurea de fisiologia ou medicina acontece na primeira segunda-feira de outubro, e os vencedores são anunciados logo em seguida. A escolha é feita com base em uma pré-seleção de dezenas de indicados (neste ano foram 273) por instituições convidadas ou outro laureados, por exemplo. Após a chegada das indicações, há um processo de filtragem e avaliação ao longo do ano até o anúncio em outubro do ano seguinte.

A cerimônia de premiação propriamente dita acontece só em dezembro.

Entre as descobertas premiadas no passado estão a descoberta da estrutura do DNA por James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins (1962), a da penicilina por Fleming e outros (1945), a do ciclo do ácido cítrico por Hans Krebs (1953), e a da estrutura do sistema nervoso por Camillo Golgi e Santiago Ramón y Cajal (1906).

Outras descobertas notáveis premiadas pelo Nobel de Medicina ou Fisiologia são a da insulina (1932), da relação entre HPV e câncer (2008), a da fertilização in vitro (2010), a de que existem grupos sanguíneos (1930) e a de como agem os hormônios (1971).

Os vencedores dividirão o prêmio de 8 milhões de coroas suecas (pouco mais de R$ 3 milhões). O dinheiro vem de um fundo (de mais de 4 bilhões de coroas suecas, ou R$ 1,52 bilhão, em valores atuais) deixado pelo patrono do prêmio, Alfred Nobel (1833-1896), inventor da dinamite. Os prêmios são distribuídos desde 1901.

Em 2015 os vencedores do prêmio nobel foram cientistas da Irlanda, Japão e China pela descoberta de substâncias que ajudam a controlar verminoses e malária.

QUÍMICA E FÍSICA

Na terça (4) e na quarta (5) serão anunciados os prêmios nas áreas de física e de química, respectivamente. Os dois são distribuídos pela Academia Real Sueca de Ciências.

Em 2015 ganharam o Nobel de física um japonês e um canadense pela descoberta de que neutrinos (pequenas partículas que compõem o Modelo Padrão da física) têm massa.

No mesmo ano, o prêmio de química ficou com um sueco, um americano e um turco pela descoberta de mecanismos enzimáticos de reparo de DNA no organismo –o que evita, por exemplo, o surgimento de cânceres por causa de mutações provocadas pela radiação solar.

AGENDA

4.out (Terça)
Nobel de Física

5.out (Quarta)
Nobel de Química

7.out (Sexta)
Nobel da Paz

10.out (Segunda)
Prêmio de Ciências Econômicas


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