Folha de S. Paulo


Bactéria é usada para 'vacinar' Aedes contra zika

Gutemberg Brito/Fiocruz
This images shows Aedes mosquitoes infected with Wolbachia
Pesquisador segura caixa com mosquitos vacinados pela Wolbachia

Uma bactéria que infecta boa parte das espécies de insetos do planeta pode ser usada para "vacinar" o mosquito Aedes aegypti, diminuindo muito ou mesmo eliminando o risco de que ele transmita o vírus zika, demonstraram pesquisadores brasileiros.

Se a ideia tiver sucesso em testes de larga escala, o combate às doenças transmitidas pelo A. aegypti finalmente deixará de depender de métodos trabalhosos e ineficientes, como a eliminação de criadouros e o uso de inseticidas.

Ainda não se sabe exatamente como a bactéria Wolbachia atrasa a vida do zika e de outros vírus semelhantes, como o da dengue. O certo é que o micróbio evoluiu para se tornar um especialista na manipulação do organismo de insetos, direcionando a reprodução deles para seus próprios fins.

Talvez por usar recursos do organismo do inseto que também são cruciais para os vírus, a Wolbachia é capaz de impedir que eles se estabeleçam com tranquilidade nos mosquitos.

Embora afete cerca de 40% dos insetos do mundo, a Wolbachia normalmente não "mora" no organismo do A. aegypti. Por isso, os pesquisadores do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) de Belo Horizonte, precisaram, em primeiro lugar, criar uma população que carregasse o micróbio.

"Os efeitos sobre o mosquito dependem da cepa da bactéria", explica Luciano Andrade Moreira, coordenador do estudo.

"No nosso caso, nós soltamos tanto machos quanto fêmeas com a Wolbachia. O macho infectado que cruza com a fêmea que não tem a bactéria faz com que ela fique estéril. Já a fêmea com Wolbachia é fértil e transmite a bactéria a todos os seus descendentes, o que faz com esse tipo de mosquito invada a população natural com bastante facilidade."

DA URCA

O passo seguinte do grupo foi infectar esses bichos com duas variantes diferentes do zika que circulam no Brasil e, ao mesmo tempo, contaminar também mosquitos sem a bactéria (coletados no bairro carioca da Urca).

Infectar ambos os tipos de inseto não ofereceu maiores desafios - bastou alimentá-los com sangue humano que carregava o zika (veja infográfico), com a ajuda de um aparato especial com uma membrana que, de certa forma, simula a temperatura da pele de uma vítima. "No Vietnã, em estudos desse tipo, pessoas de verdade são picadas", conta Moreira.

Após sete e 14 dias, o organismo dos bichos foi examinado, por meio de um teste que detecta o material genético do vírus, e a presença do zika foi medida na cabeça, no tórax, no abdômen e na saliva dos animais (esse último ponto é importante porque, afinal, é por meio da saliva, ao picar as pessoas, que o A. aegypti transmite os vírus que carrega).

Em todos os casos, a presença do zika foi muito menor nos bichos com a Wolbachia. O dado crucial, claro, é o da saliva: só 45% dos insetos que carregavam a bactéria tinham zika em sua saliva –contra 100% dos mosquitos livres do micróbio.

Mais importante ainda, quando essa saliva foi injetada em dois grupos de 80 insetos sem o vírus, nenhum dos que receberam a secreção dos A. aegypti com Wolbachia foi infectado com o zika –contra 85% dos injetados com a saliva dos mosquitos comuns.

Resta saber, é claro, qual seria o impacto prático desses achados numa cidade de grande porte sob o ataque dos mosquitos. É preciso que os mosquitos com Wolbachia sejam bons de reprodução também - só assim a bactéria poderia se espalhar por uma fração razoável da população da espécie, o que, em tese, reduziria a transmissão do zika e do vírus da dengue.

"Pelo que temos visto, os mosquitos com a nossa cepa de Wolbachia sobrevivem bem na natureza. As diferenças são pequenas - as fêmeas colocam 10% menos ovos, e esses ovos são um pouco menos resistentes quando ficam secos. Em áreas da Austrália onde a introdução aconteceu em 2011, até hoje uns 90% dos Aedes têm a Wolbachia."

Os pesquisadores ressaltam que não se trata de uma fórmula mágica, mas de uma possível arma adicional contra a doença. Por enquanto, foram feitos testes em campo em duas pequenas comunidades do Rio, cada um com 3.000 habitantes.

Moreira diz que a tecnologia já está pronta para um teste de grande escala, que envolverá também a avaliação da transmissão dos vírus para os seres humanos. "Estamos negociando como e
quando fazer isso com o Ministério da Saúde e com as agências financiadoras", afirma.

A pesquisa está na revista científica "Cell Host & Microbe".


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