Folha de S. Paulo


Soro brasileiro antiveneno de abelha será testado em humanos

Divulgação
Abelhas _Apis mellifera_, reesponsáveis por 140 mortes ao ano no Brasil, tem veneno coletado com auxílio de choques elétricos
Abelhas Apis mellifera têm veneno coletado com auxílio de choques elétricos por meio de fios de metal

Ser picado por uma abelha dói. Por cinco, dói muito. Por um enxame, pode matar.

Um novo soro, criado por cientistas brasileiros, promete ser o primeiro do tipo do mundo a combater especificamente o veneno de abelha para os casos mais graves.

Estima-se que mais de 15 mil pessoas sofram ataques de abelhas por ano no Brasil –8% do total dos ataques de animais peçonhentos. Dessas pessoas, 140 morrem em decorrência das picadas e outras podem ter complicações renais e seu estado de saúde geral agravado.

Curiosamente, a forte dor característica das picadas foi um motivo que impediu o desenvolvimento anterior da vacina. Os equinos são os animais escolhidos para a produção desse tipo de soro, mas são muito sensíveis à dor. "São bichos que literalmente morrem de cólicas", diz Rui Seabra Ferreira Jr., veterinário e professor da Unesp.

O pulo do gato veio durante as pesquisas de Ferreira Jr., há cerca de 15 anos, quando veio a ideia de remover do veneno a porção responsável pela dor –deixando só as toxinas que causam prejuízo da função renal, por exemplo.

Essa nova fração pode ser inoculada nos cavalos, que então produzem anticorpos contra essas moléculas. Dependendo do animal podem ser extraídos até 25 litros de sangue por inoculação (veja o processo no infográfico).

Antes de a pesquisa chegar na fase clínica, houve testes com camundongos, coelhos e carneiros –alternativas caso a inoculação com cavalos não funcionasse. O soro, antes de ser envasado é purificado e tratado quimicamente para minimizar efeitos colaterais.

VACINA ABELHA

TESTES

Os testes em humanos devem começar nos próximos meses. A vacina estará disponível em três centros de pesquisa: um em Botucatu (onde fica a instituição sede da pesquisa, a 238 km de São Paulo) e outros dois em Tubarão (SC) e Uberaba (MG).

O processo basicamente consiste em aguardar que pessoas sejam picadas para serem testadas. E nada impede que pessoas de regiões próximas sejam levadas a esses centros para serem tratadas.

Na primeira etapa, que deve levar cerca de um ano, a meta é reunir 20 casos de envenenamentos para serem tratados com o soro antiapílico (de Apis mellifera, o nome científico das abelhas). Será testado o ajuste de dose e verificada a segurança do composto em humanos.

Se funcionar como se espera, o soro deverá ser testado, em uma nova fase de pesquisa clínica, em 300 pessoas em todo o país para a avaliação de sua eficácia. Como não existe nenhum outro tratamento específico para envenenamento de abelhas –apenas anti-inflamatórios e antialérgicos são administrados–, se tudo der certo, pode ser que a aprovação venha logo após esses testes, especula Ferreira Jr.

A empreitada envolve principalmente a parceria do Centro Virtual de Toxinologia (Cevap) da Unesp e o quase centenário Instituto Vital Brasil (RJ). Os investimentos no projeto são 100% públicos

Esse pode ser ainda primeiro soro, de qualquer tipo, aprovado em testes clínicos no país. Os tradicionais soros contra venenos de serpentes, escorpiões e aranhas são heranças de um passado onde não havia regulamentação tão intensa quanto a de hoje. Será também o primeiro soro antiveneno a ser avaliado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, criada em 1999).

Ferreira Jr. se diz um entusiasta da pesquisa porque o soro é resultado de estudos realizados na própria universidade. A patente do produto deverá gerar receitas para a Unesp no caso de exportação para países onde as abelhas são um problema.

CAOS APIÁRIO

Como as temidas abelhas africanizadas, que deram início a ataques e mortes por aqui, se espalharam pela América? A Unesp fez parte dessa história.

A produção de mel no Brasil na década de 1950 ia mal. O geneticista da Unesp Warwick Kerr foi à África pesquisar as produtivas colônias africanas, também conhecidas por sua agressividade (ou alta defensividade, já que elas só picam aqueles que se aproximam demais).

De lá, Kerr trouxe dezenas de rainhas para ver se a produtividade poderia ser reproduzida em terras paulistas (no campus de Rio Claro da Unesp). Por um infortúnio, rainhas escaparam e se reproduziram com zangões da versão europeia do bicho, já disseminada no país.

A alta produtividade e eficiência das colônias híbridas –africanizadas– era notável. As abelhas dormiam mais tarde e acordavam mais cedo e o tempo de desenvolvimento de um novo inseto era um dia menor: as colônias europeias não tiveram chance.

"Foi algo sem precedente na história do planeta com relação ao nascimento de uma nova espécie", conta Ferreira Jr. "A tendência produtiva permaneceu, assim como a defensiva". (Felizmente, as abelhas não saem caçando cavalos ou pessoas).

A tendência produtiva permaneceu, assim como o temperamento. Apicultores foram atacados (antes, equipamentos de proteção eram dispensáveis). Houve mortes. De certa forma, o soro da Unesp é uma redenção histórica.

Em 1979, as abelhas africanizadas cruzaram o canal do Panamá, mesmo tentativas de barreiras. Em 1986, chegaram no México e, em 1990, nos EUA.

Em 1986, chegaram no México e em 1990 no Texas (EUA). "Por isso nasceram filmes como 'Killer Bees!' [Abelhas Assassinas, de 2002]. Os americanos nos adoram por isso", brinca o veterinário.


Endereço da página: