Folha de S. Paulo


Projeto reaproxima famílias separadas pela hanseníase

"Não vejo minha mãe há 56 anos", conta Manoel Soares, 65. Ele foi internado no hospital-colônia Souza Araújo, no Acre, aos nove anos por ter contraído hanseníase.

À época chamada de lepra, pessoas com essa doença –cuja principal característica é a presença de manchas na pele– eram isoladas de suas famílias e internadas compulsoriamente em hospitais-colônias, os leprosários, que funcionavam como minicidades.

Embora desde o Brasil colonial o procedimento fosse afastar os enfermos do convívio social, houve a intensificação das internações forçadas na década de 1920.

Com o intuito de reunir as famílias afastadas pela internação, o Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase) criou em 2011 um novo projeto com o intuito de identificar parentes.

Segundo Artur Custódio, coordenador do Morhan, o projeto já reuniu cerca de 200 famílias no país inteiro. Destas, cerca de 120 precisaram de teste de genética.

O exame genético é coordenado pela presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, Lavinia Schuler-Faccini. A pesquisadora explica que o teste genético é necessário porque filhos dos doentes eram retirados do seu convívio e registrados no nome das famílias que os recebiam.

Manuel, que atualmente vive em Bauru e trabalha como pedreiro, conseguiu localizar sua mãe e nove irmãos, que ainda moram no Acre, sem teste genético –ele ainda lembrava seus nomes. Ele deve embarcar em breve para reencontrá-los.

Outras vítimas da doença entrevistas pela Folha relatam situações parecidas nos leprosários. Alice de Andrade, 82, conta que os bebês eram separados dos pais imediatamente após nascerem.

Ela foi internada aos 15 anos no hospital Santa Teresa, em Laguna (Santa Catarina). Diz ter sido muito bem tratada ao ir morar na casa de uma grávida, dentro do leprosário, que passou a cuidar dela como se fosse sua filha.

"Quando deu à luz, ela não teve nem o direito de olhar a carinha do filho para ver se era parecido com ela e o pai. Ele foi arrancado dela", conta. Alice também conseguiu reencontrar a família pelo projeto do Morhan, assim como Helena Bueno Gomes, 54.

Helena foi uma das crianças retiradas do convívio dos pais, que viviam em uma colônia em Itu (SP). De lá, foi levada a um educandário –lembra que sofria castigos físicos no local por faltar à missa. "Hoje consegui reconstruir a minha história, como um quebra-cabeça que você vai colocando as pecinhas."

Hanseníase

ALTA

O médico especialista em hanseníase Marcos Virmond, 65, explica que a única opção naquele período em que não havia tratamento era o afastamento. Hoje, diz ele, o tratamento ambulatorial é altamente eficaz –a doença é de baixo contágio, e assim que o tratamento é iniciado a transmissibilidade cai muito.

Virmond é presidente da International Leprosy Association e diretor do Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, antigo leprosário e hoje centro de referência na doença. O instituto chegou a ter 1.500 pessoas internadas. Já havia tratamento nos anos 1960, quando houve o fim do isolamento compulsório por lei.

Manoel, que foi um dos pacientes que teve alta nesse período, teve de procurar trabalho. "Precisava pagar o aluguel, então virei pedreiro", explica ele, que ainda segue na profissão.

Alice estava em Itu quando lhe disseram eu seu período de internação acabou. Ela sentiu como se fosse um passarinho preso em uma gaiola sendo libertado para o mundo. "Um passarinho que tem as asinhas atrofiadas, não sabe procurar comida", conta ela.

Além disso, o fato de não serem aceitos pela sociedade para Alice foi um problema. "Eles não davam emprego. Meu marido era economista. Saiu do hospital, mas ainda era considerado leproso." "As abelhas não largam a colmeia", afirma ela. "Também foi difícil para nós. Lá era nosso mundo."

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LINHA DO TEMPO

Entenda a história da hanseníase no Brasil

1923 Decreto estabelece o isolamento de pacientes com determinados casos de lepra

1947 Lei federal reforça a obrigatoriedade do isolamento compulsório dos doentes

1962 Fim do isolamento compulsório por lei

1976 Portaria do Ministério da Saúde recomenda o tratamento ambulatorial

1985 Surge o tratamento utilizando de mais de uma droga simultaneamente, garantindo tratamento mais eficaz. Técnica chega ao Brasil nos anos 90

2007 Lula aprova lei que dá pensão aos brasileiros internados até 1986. Atualmente, cerca de 9.000 pessoas recebem essa pensão

2011 É criado o Programa de Identificação de Familiares Separados pelo Isolamento Compulsório, também chamado de projeto Reencontro, que inclui a realização de mais de 400 testes genéticos


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