Folha de S. Paulo


Vacina da dengue não é solução mágica, mas é o que temos, diz diretora da Sanofi Pasteur

É possível que, em 2016, o Brasil tenha à disposição a primeira vacina contra a dengue. E ela deve ser do laboratório francês Sanofi Pasteur, que já finalizou os testes e submeteu o produto à análise da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Para Lucia Bricks, diretora médica da empresa na América Latina, a vacina vai ajudar a controlar a dengue, mas não é solução mágica nem erradicará a doença. "Ela vai ser útil ao lado de outras estratégias", afirmou.

Ela também respondeu às acusações feitas por Isaias Raw, do Butantan, e disse que a vacina não foi favorecida pela Anvisa e, por isso, estaria à frente do produto do concorrente. Sobre o fato de oferecer 60,8% de proteção, disse: "É o que temos neste momento".

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Folha - Há uma certa animosidade na corrida das vacinas contra a dengue. Isaias Raw, do Instituto Butantan, afirmou à Folha que a Sanofi teria sido beneficiada pela Anvisa e por isso está em fase mais avançada. Como vocês reagiram?

Lucia Bricks - Nós somos parceiros do Butantan, respeitamos muito o instituto, mas precisamos colocar os pingos nos "is" e esclarecer confusões que tenham sido geradas.

A Sanofi está há 20 anos trabalhando para fazer uma vacina contra a dengue, e há dez anos começamos a desenvolver a atual, que é a única com eficácia comprovada em estudos de fase 3 [último antes da aprovação], testada em mais de 40 mil pessoas em 15 países, incluindo o Brasil, e que submeteu à aprovação da Anvisa. Esperamos que a resposta saia até o fim do ano.

Adriano Vizoni/Folhapress
Lucia Bricks, 58, diretora médica da farmacêutica Sanofi Pasteur na América Latina
Lucia Bricks, 58, diretora médica da farmacêutica Sanofi Pasteur na América Latina

A vacina da Sanofi começou a ser desenvolvida antes da do Butantan?

Sim. A gente seguiu todos os passos corretamente –estudos de fase 1, 2 e 3– e não teve nenhum benefício. Também é importante fazer uma defesa da Anvisa. Tudo que é feito lá é registrado, nada é feito por baixo do pano. Tudo isso é muito sério, ninguém passa por cima de ninguém. Seria um absurdo, nossa companhia é muito séria.

A Pasteur fez ainda, de forma inovadora, o desenvolvimento industrial em paralelo com o desenvolvimento clínico. A empresa construiu uma fábrica só para a vacina contra a dengue na França e já está produzindo lotes industriais. No ano que vem, já teremos cem milhões de doses.

Isso é comum, produzir a vacina sem que ela esteja licenciada?

Não, isso ocorreu porque a vacina contra a dengue foi considerada uma necessidade de saúde pública.

Mas não existe um risco de produzir isso tudo e a vacina não ser aprovada pelas agências reguladoras?

Sim, mas esse risco foi tomado pela companhia em função da emergência da epidemia. Nosso estudo de fase 3 é muito consistente e foi publicado em revistas de peso. Não estamos brincando.

Quero que o Brasil seja primeiro país a aprovar, mas a vacina também está sendo submetida para aprovação em outros países. Se o Brasil não quiser, tem muito país que quer. Se não desse certo, tenho certeza que a Pasteur não iria desistir. Mas pode escrever que já deu certo. É a maior evolução neste momento. Pode ser que daqui um ou dois anos venham outras, e serão bem-vindas.

A Organização Mundial da Saúde tem o objetivo de reduzir a mortalidade por dengue em 50% até 2020. A vacina da Pasteur vai certamente contribuir. Primeiro porque é a única que está pronta. Vai ser oferecida para toda a população brasileira? Com certeza não, mas entrará junto às demais estratégias. Não é solução magica nem vai erradicar a doença, mas vai beneficiar a população.

Outra crítica de Raw é que a vacina precisa de três doses e leva um ano para imunizar a pessoa, que já deve ter tido contato com a dengue, enquanto a vacina do Butantan é dada em uma dose.

A necessidade das três doses não foi inventada. A gente teve que fazer uma série de estudos para ver qual seria uma melhor formulação e o intervalo de seis meses entre as doses. Se eu fizer um intervalo muito curto, posso ter interferência de um vírus no outro. A ideia de fazer em três doses é para ter maior resposta possível de longo prazo.

Várias vacinas para crianças também são dadas em três doses. As vacinas de HPV ou hepatite B também são em três doses. As pessoas estão se apegando a isso, mas fazer uma vacina contra quatro vírus em uma dose só não dá.

O Butantan diz que uma dose só da vacina deles tem proteção de 90%, mas isso não deveria ser colocado dessa forma porque não teve estudo eficácia. Uma dose só vai proteger ou não? Vou até torcer para que proteja, mas a realidade é que, neste momento, não tem nada que diga isso.

O maior estudo de uma vacina contra a dengue, que testou a vacina de vocês no Brasil e outros países da América Latina, mostrou eficácia de 60,8% para qualquer tipo de dengue. Ok, é o maior resultado obtido, mas isso é pouco, já que as outras vacinas, como a da febre amarela, têm eficácia de mais de 90. Um representante do Ministério da Saúde afirmou que essa eficácia é limitada. Por que aplicá-la mesmo assim?

É preciso contextualizar: 60% é muito ou pouco? Se tem 1 milhão de infectados, são 600 mil casos a menos.

A vacina também reduz em 95,5% os casos graves e em 80% as hospitalizações. É um impacto dramático, as pessoas têm medo de morrer de dengue. A vacina da gripe também não protege 100%, mas que impacto tem?

No caso da dengue, é como se fossem quatro doenças diferentes. A vacina é muito diferente. Vacina de meningite C protege 95%, mas não contra os outros tipos de meningite.

É o que temos na nossa mão neste momento para controlar a dengue. Ninguém é louco de falar que não precisa mais combater o mosquito, mas isso não teve sucesso. Temos que fazer alguma coisa, e a única que vai poder contribuir num curto espaço de tempo é a vacina da Pasteur.

Esses 60% é uma média entre os 4 sorotipos, mas para os sorotipos 1 e o 2, a vacina mostrou eficácia de menos de 50%. No México, onde circularam mais os tipos 1 e 2 durante o estudo, a eficácia foi de 31%. Em São Paulo, o que mais circula agora é o 1. Nesse caso, a vacina não se torna menos útil?

A circulação dos vírus é imprevisível. Ela pode ter eficácia menor em um ano em que circulou mais sorotipo 1 ou 2, mas proteção maior depois maior quando circular o sorotipo 4. Não vale para um ano só, os dados do Brasil mostram isso. Tenho que trabalhar com média, 60% para qualquer tipo de dengue, em qualquer país.

Os estudos mostram ainda 43% de proteção entre quem nunca teve dengue. Faz sentido liberar uma vacina assim? Não é muito pouco?

Um grande problema é que não dá para saber quem teve ou não teve a doença.

Talvez a melhor estratégia inicial de vacinação seja escolher e analisar em que faixa etária vou ter maior benefício e impacto. O que o governo vai fazer é analisar esses dados. Vacinando esse grupo, vai ser melhor e obtenho tal impacto em tanto tempo.

Outra questão é individual. Vamos supor que tenho um filho que já teve dengue, mas não sei o tipo. Vacinaria e protegeria contra os outros tipos? A dengue pode hospitalizar, não tenho nada mais que proteja. É muito ou pouco? Depende do que você tem para oferecer.

Tem perguntas que não são fáceis de serem respondidas, mas existem estratégias que podem ser bem justificadas. Uma é a estratégia do governo, que vai debater o que é viável. Do ponto individual, a gente vai ter que analisar o que faz com o nosso dinheiro e que tipo de benefício vai obter.

O secretário estadual David Uip disse que só a vacina vai poder controlar a dengue. O ministério da Saúde, por sua vez, afirmou que a vacina não vai acabar com a dengue, porque não estará disponível a todos nem vai reduzir a necessidade de combate ao mosquito. Qual é o prognóstico de vocês?

A vacina vai ser um instrumento útil para controlar a dengue, mas jamais vai erradicar a doença. Seria irresponsabilidade dizer isso. Mas que sera útil junto com outras medias, disso não tenho dúvida.


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