Folha de S. Paulo


Homem com tumores no rosto desafia o estigma ao atuar com Scarlett Johansson

Adam Pearson está acostumado a que as pessoas o notem. Algumas semanas atrás, em uma loja de DVDs em Croydon, no sul de Londres, um grupo de meninas começou a falar alto sobre ele e a fotografar seu rosto com seus smartphones. "Eles ficavam dizendo, 'nossa, olha aquele homem', e eu só queria comprar 'The Hobbit' em Blu-Ray", ele conta.

Pearson sofre de neurofibromatose, uma doença que afeta uma em cada 2,3 mil pessoas e causa tumores não cancerosos nos tecidos nervosos. No caso dele, a maioria dos tumores surge no rosto, ainda que, acrescenta Pearson em tom seco "eu tenha um no traseiro que provavelmente não vou lhe mostrar". Ele sofreu agressões e intimidações e foi chamado de toda espécie de coisa, em seus 29 anos de vida –de Homem Elefante a Scarface.

Richard Saker/The Guardian
Adam Pearson, que tem neurofibromatose e atuou no filme
Adam Pearson, que tem neurofibromatose e atuou no filme "Under the skin" com Scarlet Johansson

Sempre que ele sai à rua, as pessoas reparam nele. A caminho de nossa entrevista, ele foi parado por dois transeuntes ao entrar no trem - mas dessa vez não por conta de sua doença, e sim porque começa a ser reconhecido. Pearson no momento está em cartaz ao lado de Scarlett Johansson no elogiado filme "Under the Skin", trabalho de ficção científica dirigido por Jonathan Glazer sobre uma alienígena que percorre as ruas de Glasgow e sequestra homens desprevenidos. Em uma das cenas mais pungentes, a alienígena (Johansson) é vista apanhando um homem encapuzado (Pearson), na calada da noite. Quando o homem anônimo revela seu rosto desfigurado, surge um momento de inflexão: a alienígena se humaniza, sofre um conflito. Os dois têm uma breve conversa sobre a natureza da ignorância e do preconceito. A alienígena não comenta o rosto do desconhecido, e o cumprimenta por suas "belas" mãos. Por fim, permite que ele escape - é a única das vítimas a sair viva.

"Um dos principais motivos para que eu aceitasse o papel é ele ser tão honesto e comovente", disse Pearson enquanto almoçávamos fish and chips em um café no sul de Londres. "Para mim o filme é sobre a aparência que o mundo tem sem conhecimento e sem preconceito. É sobre ver o mundo com olhos alienígenas, creio".

Boa parte do diálogo foi improvisado. Pearson e Johansson conversaram antes da cena sobre a direção que desejavam tomar - a frase sobre as mãos, por exemplo, veio dele. "Minha mãe acha minhas mãos bonitas", ele conta, com um toque de embaraço. Ele também teve de filmar uma cena de nudez com Johansson - algo que causaria nervosismo até mesmo ao mais experiente dos atores.

"Eles dizem 'ação' e você atua, é só", ele afirma. "Não pensei a respeito, na realidade... Não divulguei a informação [de que trabalharia no filme] até bem perto do lançamento. Não contei coisa a alguma a respeito, a algumas pessoas, e só as levei para ver o filme. Minha amiga Heidi passou uma semana sem me olhar nos olhos depois disso".

Uma das suas lembranças favoritas dele sobre o trabalho foi participar com a estrela de uma disputa sobre quem contava a piada mais politicamente incorreta. Pearson venceu, mas Johansson foi uma adversária difícil (e as piadas em questão são de rolar de rir, mas não posso reproduzi-las).

O mais importante é que "Under the Skin" deu a Pearson uma oportunidade de desafiar o que ele vê como estigma no que tange às representações cinematográficas de desfiguração. "Há muito medo do desconhecido", ele diz. "Se posso tentar ser o mais normal possível e mostrar que não há o que temer - no filme ou no dia, quando vou fazer compras ou apanhar o leite -, tanto mais as pessoas verão coisas parecidas em meio à sociedade mais ampla e tanto menor será o estigma. Já se eu ficar sentado em casa me lamentando, abraçado ao cachorro e chorando, nada mudará".

Ele aponta para o fato de que no cinema imperfeições faciais são muitas vezes usadas para denotar o mal, quer estejamos falando da cicatriz ocular de Blofeld nos filmes de James Bond ou do vilão na recente adaptação de "O Justiceiro Solitário" pela Disney que tinha um rosto severamente desfigurado e aparentemente recebeu um palato fendido por obra dos maquiadores. "É algo que é sempre usado de maneira muito preguiçosa", explica Pearson. "Em um mundo ideal, atores que sofrem de uma dada condição interpretariam os personagens afetados por ela, mas isso vai demorar a acontecer. Os realizadores dos filmes tendem em lugar disso a usar um ator normal, genérico, e a recorrer a próteses e maquiagens. Se alguém pintasse Adam Sandler de preto para interpretar Nelson Mandela, haveria fortes protestos... mas quando se trata de cicatrizes e coisas assim, as pessoas parecem não se incomodar".

Em pessoa, Pearson é tanto eloquente quanto extremamente engraçado. Ele é discretamente confiante e tem um grau de autoconsciência raro nos homens da casa dos 20 anos. Quando criança, teve de amadurecer muito rápido. O diagnóstico de neurofibromatose surgiu quando ele tinha cinco anos, depois que ele bateu a cabeça em um parapeito de janela e o galo resultante se recusou a desaparecer.

Seu irmão gêmeo idêntico, Neil, sofre da mesma doença, mas nele ela assuma forma diferente. "Ele parece normal", diz Pearson, "mas sua memória de curto prazo é péssima".

O segundo grau, em Croydon, foi difícil para ele. Era insultado e intimidado regularmente, e ninguém sabia o que fazer a respeito. Ele se lembra de uma ocasião em que um suposto amigo disse que um professor queria falar com ele em uma sala de aula. Ao entrar, Pearson foi atacado por um grupo de colegas que estavam esperando para emboscá-lo. "Voltei para casa com o blazer todo cuspido. Foi horrível", conta.

Ao longo de tudo isso, ele realizou cirurgias para reduzir alguns dos tumores; até o momento, passou por cerca de 30 procedimentos médicos. Como resultado, ele demonstra ceticismo compreensível quanto à moda recente cirurgias cosméticas eletivas. "Não sou muito fã de a cirurgia cosmética lucrar em cima das inseguranças das pessoas", diz. "Li que cerca de 90% das mulheres não gostam de sua aparência e acho que é porque se comparam com as imagens retocadas que veem na 'Vogue' e 'FHM'. As pessoas não são realmente alfabetizadas quanto à mídia. Não sabem o que acontece na produção dessas imagens. Educação quanto à mídia deveria ser parte da educação mais ampla. Creio que quantificar a beleza represente um grande desserviço a ela".

Foi durante uma das visitas regulares de Pearson à Great Ormond Street para seus tratamentos que ele viu um cartaz anunciando a Changing Faces, uma organização que ajuda pessoas e famílias que convivem com doenças, marcas ou cicatrizes que afetam sua aparência. Pearson entrou em contrato com o grupo e pediu ajuda sem contar aos pais - eles descobriram a respeito só quanto o material de divulgação do Changing Faces começou a chegar pelo correio. A organização lhe ensinou a lidar com muitas situações, encorajando Pearson a se manter positivo e a lembrar que "eles [os bullies] é que têm problemas, não você".

As coisas melhoraram quando ele entrou na Universidade de Brighton para estudar administração de empresas. Ao se formar, ele já tinha realizado trabalhos de produção televisiva para a BBC e o Channel 4, onde continua envolvido na escalação do elenco de séries como "The Undateables" e "Beauty and the Beast", que contestam os conceitos da sociedade sobre as deficiências físicas.

Foi trabalhando para o Channel 4, em 2011, que ele recebeu um e-mail da Changing Faces falando sobre uma produtora de cinema que estava em busca de um ator para o personagem de "Under the Skin". Pearson respondeu ao anúncio e conseguiu o papel. O filme foi uma experiência espetacularmente positiva, e não só porque ele saiu do trabalho carregando o e-mail pessoal de Scarlett Johansson.

Pearson quer atuar mais. Gostaria de arranjar uma namorada ("estou solteiro no momento"), e embora exista probabilidade de 50% de que ele transmita sua doença a um filho, isso não o preocupa demais. "Meus filhos seriam geneticamente espetaculares, de qualquer forma".

No momento ele vive com os pais, Marylin e Patrick, os dois aposentados. Estão orgulhosos de suas realizações?

"Com certeza elas servem de assunto de conversa entre eles e os amigos", ele diz. "Um amigo diz que a filha acaba de entrar na Universidade de Cambridge e eles respondem que eu estou fazendo um filme com Scarlett Johansson". Ele limpa o prato, e diz: "Pronto Acabou a disputa!"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: