Folha de S. Paulo


Americana enfrenta trilha de 1.800 km e conta experiência em livro

Órfã de mãe, abandonada pelo pai, recém-divorciada e entregue à cocaína, a garota de 26 anos não conseguia enxergar caminho nem futuro. Então largou tudo e foi buscar consolo na natureza, enfrentando sozinha uma trilha selvagem nas montanhas do oeste norte-americano.

Três meses e quase 1.800 quilômetros depois, ela emergiu da chamada Pacific Crest Trail como uma mulher capaz de decidir seu destino. Anos mais tarde, ficou famosa contando a história de sua jornada de redenção pessoal.

Ela é Cheryl Strayed, 44, casada, mãe de dois filhos e autora de "Livre", que chega neste mês ao Brasil depois de mais de um ano na lista dos mais vendidos do "New York Times". Lançado nos EUA em março de 2012, o livro entrou para o ranking logo em sua primeira semana no mercado e deve virar filme em breve --os direitos foram comprados pela atriz Reese Witherspoon.

Nesta entrevista à Folha, Cheryl Strayed fala sobre sua experiência na trilha, o livro e os dias que passou no Brasil, há dez anos.

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A americana Cheryl Strayed, 44, autora de
A americana Cheryl Strayed, 44, autora de "Livre"

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Folha - Por que a sra. decidiu fazer a trilha?

Cheryl Strayed - Eu procurava descobrir quem eu era e quem eu queria ser. Estava sofrendo depois da morte da minha mãe, não tinha pai e me sentia tão sozinha... Parecia que tudo tinha ido esgoto abaixo, e eu não tinha descoberto o meu caminho. Decidi tentar buscar minhas forças. Eu sabia que só conseguiria se embarcasse em uma jornada em que estivesse sozinha. Eu me sentia bem na natureza, assim me voltei para ela naquele momento.

E o que a sra. aprendeu com a trilha?

Quando comecei, estava buscando conforto emocional e redenção espiritual, mas percebi que a caminhada seria mais difícil do que eu imaginava. Eu não iria poder focar nos aspectos emocionais, estaria imersa nos desafios físicos --caminhar todos aqueles quilômetros, carregar uma mochila enorme. Foi uma lição para mim. No livro uso isso como metáfora. Eu tinha de suportar o que parecia insuportável. Eu tinha que fazer isso com a mochila pesada e tinha de fazer isso com a minha vida emocional. A experiência me acordou. Reconheci minhas forças e me vi seguindo em frente.

Foram vários encontros na trilha. Qual o mais importante?

Talvez a primeira pessoa que encontrei na trilha, o primeiro trilheiro, Greg. Encontrar com ele de certa forma restaurou a minha fé. Ainda que ele fosse mais forte, eu poderia dizer que nós éramos espíritos na mesma onda. O encontro com ele, de certa forma, se repetiu nos encontros seguintes: a cultura da trilha é muito amistosa, todas as diferenças de classes, religiões ou visões políticas são diminuídas porque ali o que interessa é carregar aquela mochila, encontrar água, se alimentar. Há um sentimento de fraternidade.

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A escritora Cheryl Strayed no décimo dia de trilha
A escritora Cheryl Strayed no décimo dia de trilha

A sra. também conversou com animais...

Vi ursos, cascavéis, sapos, coiotes e uma raposa. Foi uma parte legal da viagem. Quando a raposa foi embora, eu chorei e disse "mamãe", como se ela fosse o espírito de minha mãe. Não que eu acredite nisso, mas foi uma resposta instintiva.

O livro, às vezes, parece um desabafo. Escrever foi uma espécie de autoanálise?

Eu não pretendo que minha escrita seja catártica. Mesmo assim, não posso negar que escrever é um processo terapêutico. Nós temos um lado bom e um lado ruim. Na minha escrita, eu tento mostrar todos esses aspectos, o que realmente se parece com o que fazemos na terapia.
Quando eu falo sobre minha mãe e meu sofrimento, eram sentimentos fortes, eu fiquei emocionada quando escrevi.

A sra. começou a escrever "Livre" 13 anos depois de ter feito a trilha. Por que demorou?

Eu escrevi quando achei que tinha condições. Não é apenas o relato de uma caminhada. O que conto é a longa e difícil jornada que enfrentei como uma forma de me salvar. Precisei deixar passar algum tempo para olhar para trás com a perspectiva que procurei passar no livro. Outra coisa é que, quando eu estava na trilha, eu estava trabalhando, na minha cabeça, na história de "Torch", meu primeiro livro. E que, por sinal, eu concluí no Brasil.

Como isso aconteceu?

Foi em Itaparica. Fiquei lá de agosto a outubro de 2003, em uma casa da fundação Sacatar, que apoia escritores do mundo todo com um programa de residência. Eu estava grávida e me lembro de fazer caminhadas pela ilha. Tenho um sentimento maravilhoso em relação ao Brasil, porque foi aí que terminei meu primeiro livro.


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