Folha de S. Paulo


'Somos viúvas de maridos vivos', diz mulher sobre cortadores de cana

"Eles ficam lá oito meses e ficam aqui com a gente três a quatro", relata Edriana Aparecida Soares, 36, moradora da Agrovila 2, no município de Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha (MG), sobre a vida de "viúva". A comunidade se formou após a chegada da barragem do rio Setúbal, que foi inaugurada com muitas promessas em 2009.

Nove anos depois, a população está a 8 quilômetros de um posto de saúde, vive com o mau funcionamento da bomba de água, que, ainda assim, chega sem tratamento. "Não tem coisa pior que chegar à noite, seu filho pedir janta e ter que dar bolacha seca para comer porque não tem água."

A situação foi amenizada com um sachê da P&G, usado para purificar a água –iniciativa da qual Edriana é voluntária–, mas ainda traz diversos transtornos para comunidade, que antes vivia da agricultura.

Hoje, eles se veem obrigados a irem para plantações de cana tirar o sustento, pois o terreno onde foram realocados não permite o desmate para plantação. "[A gente quer] Tirar nosso sustento daqui porque é o que a gente sabe fazer: plantar e colher."

Leia seu depoimento à Folha.

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Sou voluntária da P&G, engajada no MAB [Movimento dos Atingidos por Barragem] e tudo que tem para representar os atingidos do município de Chapada [do Norte, MG]. Antes da barragem, a gente morava nas margens do rio Setúbal.

Com a construção, tiveram pessoas que pegaram cinco hectares de terra aqui dentro da Agrovila, outras pegaram terra em outro lugar. Quem era poceiro e agregado, tinha direito a 30 hectares. Quem era dono da terra, a 40 hectares.

Você recebia as plantações que tivesse às margens do rio, as culturas de longo prazo, como mamão, banana, laranja. Agora, as culturas de curto prazo, como hortaliças, feijão, mandioca, batata, não recebia. A gente recebeu uma casa padrão de cinco cômodos, com banheiro, fossa séptica. Só tem duas casas diferentes porque são pessoas cadeirantes.

Quando a gente morava às margens do rio, não tinha uma escola desse porte, não tinha posto de saúde, não tinha um salão [comunitário]. Hoje, tem um posto de saúde que não funciona, mas está aí todo equipado. Tem aquela escola, que é muito grande, mas só funciona no período da tarde. E tem esse salão que é onde a gente se reúne. Somos quase cem famílias.

O posto foi construído e desde 2009 ele existe aí. Algumas coisas, o pessoal do posto da Vargem do Setúbal apanhou e levou, como armário, cadeiras, fogão, mas a Rural Minas deixou equipado para que ele funcionasse.

Aqui, o maior problema é, quando tem uma grávida, ela tem que ir de moto, pegar carona no carro escolar ou ir a pé, que são de 8,5 a 9 km [até o posto de saúde] porque eles não vêm atender aqui. O carro da saúde que tem hoje é só um carro no Granjas, mas eles não carregam doentes.

Se não tiver dinheiro para pagar o frete para ir para o hospital, morre sem ir porque eles não dão o carro. O frete daqui a Minas Novas é R$ 300. Eles falam que o carro é só para carregar enfermeira, buscar médico em Chapada [do Norte], levar.

'VIÚVAS'

A gente aqui não tem trabalho. A gente sobrevivia, quando morava nas margens do rio, da agricultura. E aqui não pode desmatar porque foi feito um levantamento por um profissional da Rural Minas de aqui é Mata Atlântica. A maioria dos homens vão para o corte de cana.

Somos viúvas de marido vivo porque eles ficam lá oito meses e ficam aqui com a gente três a quatro. A gente fica mais sem marido do que com marido. É triste [isso] porque, quando você tem um filho, ele não vê aquela criança andar, falar, todos os problemas é você que tem que resolver. Se tem uma criança doente, é você quem tem que levar para o médico, uma reunião de pais, é você que tem que ir. Tudo é você.

Você se torna pai e mãe daquela criança porque o filho só vê o pai poucos meses no ano. Isso impacta porque eu tenho uma filha mais velha, que mora em São Paulo, e ela fala muito para mim hoje como queria que o pai falasse 'não' para uma festa que queria ir. Isso faz muita falta. À noite, as crianças vão dormir e você não tem com quem conversar.

[A renda da cana] Depende muito porque varia da quantidade que corta. Meu marido tem um problema na perna, o que dificulta. Às vezes, ele tira R$ 1.200, R$ 1.300, é a renda que tem. O pior de tudo é que o que ele ganha lá, a gente gasta cá com roupa, remédio, comida, luz.

As mulheres ficam aqui porque a gente não tem água para fazer uma horta, não tem como fazer o Cartão do Produtor Rural porque como não tem como provar que produz.

A gente podia fazer parte do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], para entregar verdura para as escolas. Já vem do governo federal que 30% da verba da merenda escolar tem que ser do agricultor familiar, mas para nós aqui não.

Ninguém planta porque não pode. Se desmatar um pedacinho da sua casa, [a fiscalização] ambiental vem e te multa. Na minha casa, tem bananeira, laranja, mas é só um pedacinho. Não pode expandir e plantar bastante para comercializar porque não pode desmatar.

A gente tem vontade de progredir, quer ficar aqui, não quer ir para longe. Quer ter oportunidade de trabalhar, tirar nosso sustento daqui porque é o que a gente sabe fazer: plantar e colher. Isso está se perdendo.

DESERTO AQUÍFERO

A água sempre veio assim. Tem toda a estrutura para tratamento de água lá em cima, mas ela nunca funcionou, simplesmente está no papel. Se entrar lá no site da barragem do rio Setúbal, está lá um monte de coisa que o governo colocou, que é uma inverdade. Teria lugar de lazer, hortas para escola. Não tem nada.

Hoje mesmo, a bomba [de água] queimou e aí sabe Deus quando ela vai ser consertada. Ano passado [em 2016], ficamos um ano e três meses [com ela quebrada]. A gente tem nas casas aquelas caixas de 16 mil litros de captação de água. Aquela água é só para comer e beber. Quando junta 15 dias sem lavar roupa, pega o transporte escolar e vai na Vargem do Setúbal lavar roupa, que é a oito quilômetros.

Só que o esgoto da Baixa Quente, que fica no município de Minas Novas, desce dentro do rio Setúbal. Tem que ir 6 horas da manhã lavar roupa, esperar secar, ficar lá o dia inteirinho. Aí volta de novo no carro da escola, ainda com a colaboração do motorista que leva a gente com saco de roupa e traz de volta.

Para beber, a gente usa a água de captação que fica na caixa. Quando acaba, a gente tem represa [um poço fundo], que usa para arrumar a casa e para beber porque tem o sachê para purificar, não tem jeito.

Não tem coisa pior que chegar à noite, seu filho pedir janta e ter que dar bolacha seca para comer porque não tem água para fazer janta, para lavar as partes íntimas, para tomar banho. Vai andar 9 quilômetros para tomar banho? É uma água de represa que está poluída, mas não tem alternativa, não dá para ir para outro lugar. É impossível, nossa realidade não nos permite.

No ano [2015] retrasado, tive um problema seríssimo. Minha filha de quatro anos apareceu com umas feridas atrás de uma orelha. A médica pediu que eu fizesse os exames e deu que era coliforme fecal da água que vem da barragem. Dei antibióticos fortíssimos e não resolvia o problema, nada melhorava aqueles brotos da cabeça dela. Para ela, faço a água para dar banho porque eu morro de medo que aconteça de novo.

A gente toma banho com a água que vem da barragem. Antes do sachê, a gente tinha muita diarreia, micose na pele porque crianças são mais sensíveis, vômito. Após o sachê, a gente não teve nenhum relato disso, nenhum problema na nossa comunidade. Esse sachê caiu do céu para nós.

O meu sonho, para minha comunidade, é que a gente tenha uma praça aonde as famílias possam vir num domingo à tarde para passear, para ter o prazer de vir aqui, para as pessoas que vierem de fora levarem daqui um bom impacto. E que possamos ter água tratada, não só através do sachê, mas que tenha providências do governo para que a gente tenha água tratada. É um direito nosso.

A repórter viajou a convite da P&G


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