Folha de S. Paulo


Seguiremos com problemas se país não se assumir racista, diz ativista negra

Ao procurar formas de inovar seu e-commerce em eventos de tecnologia, Maitê Lourenço, 33, muitas vezes se viu como a única mulher negra no meio da inovação. "Isso me incomodava porque eu via o quanto que minha fala contribuía, fosse para olhar para um público diverso, fosse para pensar em alternativas voltadas para um outro grupo."

Ela ficou um ano observando esse cenário até fundar uma iniciativa para fomentar e agregar pessoas negras nesse meio. No fim de 2015, começava o BlackRocks, "uma organização e um movimento que incentiva a população negra a acessar o ecossistema de inovação, tecnologia e start-up."

"O principal gargalo, e o mais relevante, é o reconhecimento do racismo", afirma. "Enquanto o Brasil não se reconhecer como um país racista, que faz as escolhas através do tom de pele, e quanto mais claro o tom de pele, mais aceitável a pessoa é, a gente vai continuar tendo problemas."

Outro ponto é a inferiorização da população negra, que perde, inclusive, oportunidades de investimento. "Há estudos que mostram que investidores preferem investir num homem branco, sentem mais confiança."

Leia seu depoimento à Folha.

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Maitê Lourenço, 33, fundadora do BlackRocks, movimento para incentivar empreendedorismo negro
Maitê Lourenço, 33, fundadora do BlackRocks, movimento para incentivar empreendedorismo negro

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Trabalhei mais de 12 anos com recrutamento, seleção de pessoas e fundei um e-commerce de gestão de carreira. No fim de 2014, comecei a ter a necessidade de automatizar o processo e passei a frequentar eventos de tecnologia e inovação.

De 2013 para frente, também comecei a entrar na questão racial, me tornei membro do grupo de relações raciais do Conselho Regional de Psicologia daqui de São Paulo, onde fiquei até 2016.

E tudo combinou. Comecei a questionar realmente a ausência da população negra em alguns status. Por que a gente não está e qual é o lugar onde nós estamos? Nesse mundo da inovação, me incomodou ser a única mulher negra ou até mesmo a única pessoa negra nesses eventos.

Isso me incomodava porque eu via o quanto que minha fala contribuía, fosse para olhar para um público diverso, fosse para pensar em alternativas voltadas para um outro grupo. Eu sentia o desconforto de entrar num lugar que não se identifica com aquelas pessoas.

E existem as duas vias, tanto o meu estranhamento de estar naquele espaço quanto o estranhamento das outras pessoas.

Infelizmente, como existe essa massificação de homens brancos, em sua maioria hétero, de classe média alta dentro do ecossistema de start-up, a gente acaba percebendo o quanto que ideias levadas por pessoas sem essas características acabam tendo menor atração, menor interesse.

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Comecei a buscar possibilidades para agregar a população negra. E aí surge o BlackRocks, uma organização e um movimento que incentiva a população negra a acessar o ecossistema de inovação, tecnologia e start-up. É onde a gente faz atividades voltadas para essa inserção e para esse incentivo.

A gente mapeou alguns empreendimentos que são startups ou que são negócios de alto impacto durante esses dois anos praticamente. Mapeei muitos mentores, profissionais negros ou não brancos que já estão inseridos no ecossistema.

Em junho, a gente fez uma mentoria com mais de 30 mentores, fez a Arena BlackRocks com 200 pessoas passando por lá, com dez horas de conteúdo. A ideia é fomentar esse ecossistema.

Questionamos o fato de não haver a proporcionalidade nesses ecossistemas. O principal gargalo, e o mais relevante, é o reconhecimento do racismo. Enquanto o Brasil não se reconhecer como um país racista, que faz as escolhas através do tom de pele, e quanto mais claro o tom de pele, mais aceitável a pessoa é, a gente vai continuar tendo problemas.

Se a gente não entender que nossa estrutura é racista, não vai sair do lugar. Por mais que tenham os esforços de várias pessoas, se torna difícil conseguir a proporcionalidade que a gente tem na população brasileira.

O outro aspecto que também perpassa por essa questão é justamente o olhar para a população negra. Enquanto se identificar a população negra como inferiorizada, a gente vai continuar nesse lugar.

Há estudos que mostram que investidores preferem investir num homem branco, sentem mais confiança, e isso interfere totalmente no processo porque eu acabo tendo sempre o mesmo olhar e, como consequência, os resultados são sempre os mesmos. Não há criatividade dentro desse modelo.

Olhando para população negra nesse contexto, eu acabo deixando de ter a diversidade e a possibilidade de criação de produtos e serviços diferenciados por conta do contexto racial. Sinto que o mercado perde.


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