Folha de S. Paulo


Mulheres viajam o mundo para contar as histórias de empreendedoras

Por que os homens empreendem mais que as mulheres? A realidade brasileira equilibrada –em que a liderança de negócios oscila na casa dos 50%– é quase um mundo à parte. O diagnóstico veio da observação de Fernanda Moura, 43, e Taciana Mello, 48, em eventos no Vale do Silício.

As duas brasileiras se mudaram para Califórnia em 2013 e, com uma "visão romantizada" do lugar que reúne empresas como Google e Facebook, se surpreenderam ao ver poucas mulheres. "Tínhamos contato com missões de empreendedores brasileiros que iam visitar o vale e comentávamos que era uma vitória quando tinha uma empreendedora mulher."

A curiosidade deu origem a pesquisas e as levou a criar o projeto The Girls on the Road (As Meninas na Estrada) para coletar histórias do empreendedorismo feminino ao redor do mundo. "Queríamos sair da discussão, de só continuar falando sobre isso e ler sobre essa questão, e de fato contribuir para que essa situação mude."

Em julho de 2016, colocaram o pé na estrada e, 24 países depois, irão lançar entre abril e maio um vídeo e um documentário com as entrevistas. Em depoimento à Folha, elas contam um pouco de como surgiu a ideia e do que viram mundo afora.

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A ideia começou 15 meses atrás. Morávamos nos Estados Unidos, muito próximo ao Vale do Silício, e costumávamos ir a muitos eventos de empreendedorismo. A menos que fôssemos a eventos dedicados para mulheres, víamos poucas como fundadoras de empresas. Elas existem, mas num número muito menor.

Em nossa carreira [Fernanda trabalhava com consultoria e Taciana com marketing e comunicação], sempre estivemos muito ligadas à área de negócios e víamos um ambiente um pouco mais equilibrado no mundo corporativo. Por que quando se muda para a área empreendedora, não é tão assim?

Tínhamos contato com missões de empreendedores brasileiros que iam visitar o vale e comentávamos que era uma vitória quando tinha uma empreendedora mulher. Normalmente, as que iam eram namoradas ou esposas dos empreendedores.

Isso despertou nossa curiosidade de pesquisar sobre o tema. Por que vemos mais homens como fundadores e mulheres na área de marketing, finanças, RH, mas não como sócias? Nos pegou de surpresa no Vale do Silício, considerada a área mais inovadora e diversa de certa forma do mundo, existir um gap grande entre homens e mulheres.

A coisa era tão gritante que começou a nos chamar a atenção. Íamos a eventos de pitch [apresentações de poucos minutos em que o empreendedor explica sua iniciativa] e, por exemplo, para cada dez homens, tinha, quando muito, uma ou duas mulheres fazendo pitch como fundadora.

O que começou como uma curiosidade virou uma paixão. Fomos buscar informação, entender o que tem impactado essas mulheres, por que os números são do jeito que são.

Uma das razões que impactam diretamente é a falta de modelos femininos. Se olharmos o mundo dos negócios, as principais referências são os exemplos masculinos de empresas lideradas e fundadas por homens.

Principalmente num cenário global, vemos empresas multinacionais lideradas por homens. Ainda que no Brasil tenhamos uma situação muito mais benéfica para as mulheres, com liderança de empresas, muitas delas são sempre as mesmas. Não temos uma renovação muito grande.

PÉ NA ESTRADA

Queríamos sair da discussão, de só continuar falando sobre isso e ler sobre essa questão e de fato contribuir para que essa situação mude. Entendemos que ir atrás dessas histórias, ter a chance de contar um pouco o que essas mulheres têm feito ao redor do mundo, era uma forma de efetivamente fazer parte desse processo de mudança.

Do início da ideia até o pé na estrada foram três, quatro meses. Traçamos mais ou menos nossos principais objetivos, conseguimos a parceria de uma produtora no Brasil, que vai fazer o suporte com toda a parte de edição. E com a cara e coragem, fomos embora.

Saímos pelo mundo para ver como funciona, se o ambiente faz a diferença, se os problemas que encontrávamos nos Estados Unidos seriam os mesmos na África, em Cuba.

Queríamos dar de fato uma visão global. Tinha que ser um grupo de países muito diverso. Não tiramos do chapéu, não foi sorteio. Fomos atrás dos relatórios em que buscamos informação lá no início para montar essa lista de países que fizesse sentido.

Aqueles que têm mulheres empreendendo muito mais que homens, por exemplo, que é o caso do Brasil. Entender porque tem países na Europa ou na Ásia extremamente desenvolvidos mas que o índice de empreendedorismo é lá embaixo. Exatamente esse índice de desenvolvimento explica em parte porque eles não empreendem tanto. E a participação das mulheres nessas culturas e nesses ambientes tão distintos.

Nos surpreendemos muito no Japão, uma das maiores economias do mundo, um país extremamente desenvolvido, com uma condição da mulher que podemos até chamar de precária, em termos de participação, de valorização, de voz ativa.

Aí vamos para Ruanda, num país obviamente em desenvolvimento, que passou 20 e poucos anos atrás por um dos maiores genocídios da história, mas que tem uma postura e uma participação feminina incentivada, valorizada. Essas contradições são interessantes de mostrar. Fizemos questão de trazer esses ambientes tão diferentes.

Foi interessante perceber que, quando falamos de mulher e de negócios, muitas das queixas e também da garra eram similares em vários países independentemente da cultura. E elas estão fazendo de tudo. Isso que é legal e ainda é pouco falado.

ESTEREÓTIPO

Vários relatórios mostram que as mulheres ainda empreendem em áreas de alguma forma mais próximas ao seu dia a dia. Cai muito no estereótipo, mas ainda é a realidade, de beleza, saúde, negócios ligados a maternidade.

Entretanto, encontramos mulheres empreendendo nas mais diversas indústrias, na área de tecnologia, construção, agrobusiness, utilizando tecnologias de ponta, inteligência artificial, realidade virtual. Ou seja, elas têm atuado e têm se lançado a criar negócios que são ainda predominantemente masculinos, mas isso não tem segurado essas mulheres.

Entrevistamos uma israelense, formada em direito e que passou pelo Exército. Ela falou que, desde a hora que saiu da faculdade, não era isso que ela queria. Foi trabalhar na área de comunicação, mídias, saúde e hoje ela fundou uma empresa de tecnologia voltada para serviços médicos. Patenteou um produto para cirurgia com menor risco de infecção que está na fase de aprovação do FDA.

Falamos também com muitas mulheres que não tinham essa formação superior tão completa. É legal ver esses exemplos femininos de que não é preciso ter uma super formação para construir um negócio. É muito do dia a dia.

DE ALTERNATIVA A ESCOLHA

Outro lado super importante e que vimos em vários países é a questão da idade. Hoje, vemos uma geração de meninas jovens, de vinte e pouquinhos, recém-saídas da universidade, ainda estudando ou que largaram temporariamente o estudo para perseguir aquilo que para elas faz mais sentido.

Vemos uma nova geração que parece enxergar o empreendedorismo como um caminho viável, não como um desvio. Até algumas décadas atrás, o empreendedorismo era visto como alternativa ao desemprego.

A partir de um certo momento, nos demos conta que tínhamos virado empreendedoras porque estávamos vivendo e sentindo as mesmas ansiedades e dúvidas que muitas das entrevistadas.

Passamos a encarar esse projeto como nosso empreendimento, de colocar o próprio dinheiro, ter que lidar com frustrações, mas também com as grandes ou pequenas vitórias, e correr atrás de um conhecimento que não tínhamos.

Nossa formação é absolutamente distinta. Tivemos que trabalhar com a produtora, entender como vai filmar porque é tudo em qualidade de cinema. Essa trajetória nossa foi muito legal porque acho que nos tornou muito mais próximas das empreendedoras entrevistadas, de entender um pouco melhor os desafios que elas enfrentam.

Fomos extremamente impactadas pelo projeto e pelas mulheres. Vemos as mulheres nesse mundo do empreendedorismo cheias de garra, de ideias, várias organizações locais sendo formadas. Elas entendem a importância desse networking de mulheres ajudando mulheres, mulheres comprando de mulheres.

Em nenhum momento é algo de nós, mulheres, contra eles, homens. Mas hoje vemos um mundo onde o homem é muito mais conectado para negócios.

Quando um investidor olha para um negócio liderado por um homem, pergunta que tipo de negócio é esse, se vai ser lucrativo. Quando olha para negócios liderados por mulheres, questiona se ela pode ser uma empreendedora, como vai ser quando casar, quando tiver um filho.

Faltam ainda para as mulheres esses canais para elas conseguirem se conectar mais, falarem das suas empresas, dos seus negócios.


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